A melancolia poética de Phoebe Bridgers
”Essa é uma canção de amor”, anunciou uma sobriamente contente Phoebe Bridgers durante sua primeira apresentação no Coachella, em abril deste ano, antes de convidar a cantora Arlo Parks para harmonizar os vocais de fundo de Graceland Too.
Por trás das cortinas, o ator britânico Paul Mescal acompanha o set de sua namorada e aguarda o momento para juntar-se a ela e Parks no palco para a catártica I Know the End, faixa que encerra todos os shows de Phoebe desde o lançamento de Punisher, seu segundo álbum de estúdio, de 2020. ”Como está meu cabelo?”, pergunta sorridente antes de introduzir os primeiros acordes, numa roupagem quase country.
Naquela ocasião, Phoebe Bridgers estava radiante. Aos 27 anos, a californiana teve os últimos dois anos mais importantes de sua carreira. Seu disco de estreia de 2017, o magnânimo Stranger in the Alps, a colocou no radar das principais publicações musicais a colocando numa presença proeminente em circuitos e festivais indie dos Estados Unidos. Punisher, seu sucessor, responsabilizou-se por projetá-la a um status até então inalcançado, rendendo indicações ao Grammy e imensa aclamação entre os críticos, bem como convites para parcerias com estrelas consagradas, como Paul McCartney e Taylor Swift.
Num intervalo de dois anos, Phoebe havia atingido um patamar quase mainstream, mas nem a adesão de mais algumas centenas de milhares de seguidores em suas contas nas redes sociais foi o suficiente para frear suas declarações honestas, sarcásticas e por vezes controversas. No ano passado, durante o fim de uma apresentação no Saturday Night Live, Bridgers destruiu uma guitarra e um amplificador. Apesar de configurar um ato clássico para estrelas do rock masculinas, a artista foi duramente criticada por uma parcela mais velha do público e também pelo guitarrista do The Byrds e CPR, Dave Crosby. Numa entrevista para a Double J em 2020, Phoebe enfureceu fãs de Eric Clapton ao alegar que o músico não só é um ”racista notório”, mas também que “faz músicas extremamente medíocres”.
O espírito irônico, estoico e cativantemente introvertido da artista sempre fez parte de sua identidade, bem como sua originalidade destemida, mais expressa por sua conduta fora dos palcos do que pelas melodias autenticamente melancólicas e reflexivas que compõe, além de também auxiliar na produção. Além de dois álbuns solo, Phoebe Bridgers formou, em 2018, o trio indie folk Boygenius, projeto paralelo feito com as artistas Lucy Dacus e Julien Baker, duas das amigas mais próximas da cantora. No ano seguinte, ao lado de Conor Oberst da já consolidada Bright Eyes, lançou o EP Better Oblivion Community Center numa sonoridade mais próxima ao indie rock.
Mesmo em Stranger in the Alps, seu primeiro álbum, Bridgers já demonstrava talento em masterizar a arte de contar histórias através de suas letras enigmáticas, crípticas, brutalmente específicas e ao mesmo tempo dotadas de uma subjetividade poética singular. Todas as músicas do disco foram escritas em momentos distintos, mas traduzem sentimentos e experiências vivenciadas pela artista durante sua adolescência e início da fase adulta. Smoke Signals, a faixa de abertura, não é exceção: foi escrita para o então namorado de Phoebe, Marshall Vore, que também é o baterista de sua banda desde sempre. O recorte mais popular do LP, Motion Sickness, faz alusão ao traumático relacionamento de Phoebe com o cantor Ryan Adams, e a artista (que também assina a composição de todos os seus lançamentos) nunca teve receio de revelar sua inspiração, mesmo que a especificidade da letra já fosse o suficiente para identificar sua origem.
A morte, o desconforto e a doença, aliás, permeiam o trabalho de Phoebe como temáticas recorrentes, e surgem em faixas como Funeral e Demi Moore. Enquanto a primeira transmite os sentimentos da cantora ao ser convidada para cantar no funeral de um amigo de infância vítima de overdose, a segunda a coloca como personagem central de certo contraste entre sentir-se desejado e posteriormente vulnerável após o abuso de substâncias. Apesar de não possuir qualquer relação com a atriz, Demi Moore é também um dos momentos mais inquietantes e ao mesmo tempo serenos do álbum, com cordas justapostas aos vocais sussurrados e suplicantes de Bridgers. Killer é outro destaque, apresentando-se como uma canção voz-piano acerca das tensões de um relacionamento abrasado pela co-dependência, ideações inseguras e falta de saúde mental.
Punisher, seu LP seguinte também lançado pela Dead Oceans, foi lançado em 2020 no auge da pandemia da covid-19 e da quarentena. Talvez por isso, experimentá-lo em tempos recentes possa proporcionar alguma sensação claustrofóbica de isolamento. Punisher tem como elemento central a potência sentimental na voz de Bridgers, acompanhada de uma produção refinada repleta de numerosas cordas bem intrincadas à uma lírica arrebatadora, apocalíptica e tão genuinamente ressentida quanto reveladora. O violino sinistro que soa tortuoso e quase desafinado da faixa de abertura é o suficiente para magnetizar o ouvinte e antecipar a sonoramente imperturbável Garden Song que, segundo Tony Berg, um dos produtores do álbum, é a música que deve-se escutar caso se queira saber quem realmente é Phoebe Bridgers.
Outro single do álbum, Kyoto, foi nomeado ao Grammy de Melhor Música e Melhor Performance, ambas na categoria de rock. Apesar de soar ao primeiro contato como um esforço jubiloso distante da melancolia das demais faixas, Kyoto conta sobre a relação de Phoebe com seu pai ausente, perdoando-o ao mesmo tempo que ressente o distanciamento. As influências líricas e estilísticas de Elliott Smith são numerosas no trabalho da artista e, não por acaso, a faixa-título do LP é dedicada ao cantor, que apesar de ter falecido em 2003, é descrito como o principal ídolo musical de Bridgers.
Halloween formata um cenário desgastado de um relacionamento morto, em que ambos já não têm energia para discutir ou traçar uma estratégia pautada na recuperação. É uma fábula fúnebre embalada por violões que propõe que a noite de Halloween seja um oásis em que os dois sejam qualquer coisa ou qualquer versão menos amarga e ressentida dos próprios. ICU (I See You) vai na contramão dessa mesma ideia, já que também fala do término da artista com seu baterista e utiliza de uma instrumentação mais típica do indie rock, crescente e animada.
Impecavelmente bem conduzido e coerente, Punisher já se tornou um clássico do alternativo desde o lançamento, e muito desse status se encontra associado aos méritos de Phoebe como compositora. I Know the End, que encerra o álbum, remonta uma experiência instrumental completamente distinta das demais ao gradativamente proporcionar imagens das mais diversas ao ouvinte por meio da composição enquanto a produção encarrega-se de guiá-lo em uma verdadeira montanha russa com a absoluta catarse como destino final.
Phoebe Bridgers é uma das atrações da primeira edição do Primavera Sound, que acontece em novembro em São Paulo, e você não vai querer perder a oportunidade de cantar junto todas as músicas!
Pingback: SZA - SOS - Moodgate