Beyoncé — RENAISSANCE
Nas semanas que antecederam o dia 29 de julho, inúmeros tweets virais tentavam antecipar o conteúdo do aguardado RENAISSANCE, sétimo álbum de estúdio da Beyoncé. Enquanto a habitual rivalidade entre fãs de cantoras femininas do alto panteão da música pop se desenrolava nas redes sociais, fios acerca da relevância da house music tomavam o Twitter, usualmente fundamentados em nomear uma única figura como a “artista responsável por trazer o gênero de volta ao mainstream.
Na ocasião do lançamento de Break My Soul, primeiro single do álbum, a produtora Azealia Banks dedicou uma série de stories em seu Instagram a destacar intérpretes que, em sua opinião, seriam os artistas lembrados no futuro por embasar a house music e ressignificá-la; sua lista, no entanto, excluía a Queen B.
Dispensando opiniões particulares, é inegável que Beyoncé seja, por si só, uma força ímpar na indústria da música. Desde seu disco auto-intitulado de 2013, a ex Destiny’s Child tem adotado formatos distintos de divulgação para seus materiais de trabalho. Embora sua carreira dispense apresentações, Beyoncé continua ressignificando o que é ser uma artista pop dentro de uma indústria tão dominada por grandes executivos e escolhas radiofônicas que visem o lucro.
Na era do Tik Tok, quando Halsey, Doja Cat e diversas outras expressam a falta de liberdade criativa e a constante sensação de estarmos refém aos algoritmos, toda gravadora quer um viral e, para isso, é tradicional que um planejamento cuidadoso de divulgação acompanhe a promoção de uma nova música.
Para a texana, no entanto, tais trâmites burocráticos e a popularidade de um single deixaram de ser máxima prioridade. depois de um álbum surpresa e o notoriamente aclamado e político Lemonade, Beyoncé já se estabelece como uma artista pertencente à sua própria liga, e, pelas composições em seu novo disco, parece estar plenamente consciente disso. “Eu sou única, sou a número um, não perca seu tempo tentando competir comigo”, anuncia a artista no pop luxurioso da terceira faixa do álbum, ALIEN SUPERSTAR, um dos destaques do RENAISSANCE.
Introduzida por batidas de sintetizadores bem demarcados, a canção ganha o ouvinte pelo contraste apresentado pelo refrão. Enquanto os versos dedicam-se a simular um ambiente característico dos ball rooms com suas batalhas de Vogue e coreografias extravagantes, o coro não é apenas uma ode à própria Beyoncé, mas também uma seção que encoraja o amor próprio, o ego e a celebração de si.
Mantendo a versatilidade de seu disco antecessor, a cantora se permite fazer escolhas de produção mais ousadas em detrimento da narrativa, o elemento central que proporcionava coerência a Lemonade e o tornava um conjunto de crônicas ora românticas, ora políticas. Como se já tivesse levado os temas de infidelidade e auto-reflexão à exaustão, Beyoncé busca as pistas de dança do fim dos anos 80 como refúgio e palco de seu festival de auto exaltação e ostentação, não de bens materiais, mas do eu. Em COZY, a batida vibrante e intensa convida a audiência a reproduzir o mesmo amor próprio e também a confiança que a artista emana, em referências líricas que, em parte, rememoram a perseverança e independência do eu-lírico de 6 inch, do álbum anterior.
O funk com pitadas de disco oitentista de CUFF IT marca um momento mais empolgado e colorido do RENAISSANCE até então. Diferentemente de ALIEN SUPERSTAR, os holofotes na quarta faixa são mais dirigidos ao entretenimento sonoro e menos à uma produção luxuosa, muito embora o esmero com a qualidade do material já seja, à essa altura, explícito. Famosa por seu perfeccionismo, Beyoncé entrega em CUFF IT uma faixa confiante e alegre irretocável que, com potencial, figura como um dos possíveis melhores candidatos para o próximo single do álbum. A cadência impecável de RENAISSANCE é mantida com ENERGY que, curta, mais funciona como uma interlude capaz de introduzir o carro chefe do disco. Com suas claras influências House e o sample de Show Me Love, clássico de 1990 de Robin S, BREAK MY SOUL opera melhor dentro do projeto completo do que como um destaque solto, muito embora sua força inegável mantenha seu cargo como uma das canções mais magnéticas do álbum.
No último sábado (06), Beyoncé anunciou em seu site oficial a venda da versão remix de BREAK MY SOUL, intitulada The Queen’s Remix. Completando a já magnânima lista de colaboradores do RENAISSANCE, a variação do single conta com a presença de Madonna e tem em seu instrumental a perfeita fusão do clássico Vogue, de 1990, o sample vocal de Explode de Big Freedia já contido na original e, sobretudo, um conteúdo lírico similar. Substituindo as estrelas de Hollywood mencionadas na ponte de Vogue por artistas antepassadas relevantes na construção do house music, Beyoncé presta uma homenagem à Lauryn Hill, Nina Simone, Sade Adu, Aretha Franklin, Erykah Badu e muitas outras, além da própria Madonna, a quem se refere como “a rainha mãe”.
O soul tranquilizante e romântico de PLASTIC OFF THE SOFA oferece uma pausa no frenesi dançante do projeto, tendo os vocais de Beyoncé como peça condutora. É uma canção que soa fresca e apropriada para tardes de verão e, com um timbre mais suave do que o habitual, a artista pinta a imagem de um relacionamento verdadeiro e confortável. A excelente e sensual VIRGO’S GROOVE remove o ouvinte do transe adocicado da canção antecessora, guiando-o à seis minutos Disco hipnotizantes. Embebida de nítidas referências sexuais, a música é convidativa e, apesar de extensa, não cede à energia elevada de outras faixas no álbum e mesmo assim sustenta-se no pódio como um dos momentos mais memoráveis do conjunto.
MOVE recruta a incrível Grace Jones e também a nigeriana Tems para um Afrobeat com percussão constante e muita personalidade. As mesmas características são observadas em HEATED que, embora expresse-se de forma menos chamativa, tem a potência vocal de Beyoncé como seu maior trunfo. O princípio tradicionalmente Trap de THIQUE, por outro lado, surpreende mais uma vez por não caracterizar-se como uma faixa comum ou esperada dentro de um projeto que presta um aceno à house music, e muito menos um álbum de uma artista pop. Outra surpresa contrastante é introduzida em AMERICA HAS A PROBLEM que, apesar do título, não possui qualquer referência política pertinente. A faixa tem uma produção que une o House e o Synth a seções de Hip Hop, tonalizadas pela versatilidade da artista que, além de cantar, também encarrega-se aqui dos versos de rap.
PURE/HONEY reestrutura a atmosfera dos ball rooms em sua primeira parcela, agora renovada na contemporaneidade graças à produção de shows como Legendary e o já concluído Pose, de Ryan Murphy. Quando a metade mais pop e funk surge à altura dos três minutos, a transição soa, no entanto, pouco articulada: enquanto a Queen B ensaia versos sobre prender um interesse romântico em seu mel, o instrumental com trompetes e batidas inicialmente discretas provocam a sensação de que, talvez, a faixa poderia, de fato, ter funcionado melhor como elementos distintos do que uma fusão propriamente dita. SUMMER RENAISSANCE é, no entanto, exatamente o que se esperava do álbum como um todo. Durante toda a experiência em consumir o projeto, é impossível não estabelecer qualquer referência a Donna Summer e, nos últimos quatro minutos e meio do disco, Beyoncé explicita suas influências ao render-se ao apelo magnético e imortal do clássico I Feel Love. Deixando também sua assinatura particular na música de 1977, a artista oferece um encerramento apropriado e inspirador para um álbum tão vibrante e dançante.
Na contramão das narrativas sonoras de Lemonade e de projetos subsequentes como a trilha sonora para o filme O Rei Leão ou o EVERYTHING IS LOVE, projeto colaborativo com seu marido Jay-Z, Beyoncé utiliza o RENAISSANCE como uma oportunidade para desafiar as expectativas de sua audiência. Nos dois últimos anos, incontáveis foram os artistas que navegaram pelas influências oitentistas da música disco ao ponto em que, em 2022, qualquer esforço nessa mesma linha poderia soar repetitivo ou previsível. Ainda assim, RENAISSANCE entrega faixas que, apesar de claramente influenciadas pelo período, são dotadas de personalidade, risco e inovação que apenas Beyoncé poderia proporcionar.