Marina Sena – Vício Inerente
Quando ousou viver, individualmente, a indústria musical, Marina Sena passou a integrar o panteão contemporâneo do Pop brasileiro, graças ao seu disco de estreia, De Primeira, que foi sucesso de crítica e vendas.
Em seu primeiro projeto, Sena soava como uma versão descompromissada, fresca e menos densa de Gal Costa, como é possível atestar na faixa Santo, um dos destaques do De Primeira. Esta persona foi a responsável por colocar Marina em posição oposta aos seus adversários e companheiros de indústria, já que estes, basicamente, dividem uma única identidade artística, que, na sede por números, vende-se enquanto fragmentação do eu, ou seja, como múltiplas versões monotemáticas de um único artista. Já com a chegada de seu novo disco, Vício Inerente, Sena parece acenar para este movimento de distintas identidades em um único trabalho; seu aceno, entretanto, é incapaz de consumir sua persona, colocando a artista como um perfeito intermédio entre o movimento mercadológico dos múltiplos gêneros e o apreço por deixar as próprias digitais por todos os cantos.
A chegada de Marina Sena à São Paulo é responsável por trazer à artista novas perspectivas sobre sua arte e isto fica nítido em toda a roupagem de Vício Inerente, que é atravessado por retratos típicos da vida cosmopolita. A construção imagética não é a única responsável por retratar o cotidiano nos grandes centros; há também o desbravamento de gêneros atrelados à urbanidade e a construção das canções — não mais sob ordens do violão, mas sob exigências dos beats — que ajudam a apresentar, ao público, o novo período de vida ao qual Sena foi submetida.
A primeira canção de Vício Inerente, Dano Sarrada, é prova de tudo aquilo que foi mencionado: a distinção de Marina Sena em relação a seus pares e a chegada de novos ares ao som da artista. Por seu título, a faixa aparenta ser mais uma, dentre tantas outras, presas a um único jogo de palavras, porém, Sena, surpreendentemente, não se apega às “sentadas e rabas”. Sob uma roupagem próxima ao Drill, a artista constrói caminhos para a expansão de sua persona. Sensualidade, distorções, dissonâncias e urbanidade passam a figurar dentre as características de Marina enquanto artista, o que é levado para a faixa seguinte, Olho no Gato. No entanto, no atual single, a cantora, como quem atenta para não se perder, resgata sua essência interiorana, tropical, ‘Gal Costês’ e a mescla aos atentos de Dano Sarrada, criando um ambiente perfeito para a existência de múltiplas personalidades, que, embora incongruentes, encontram brechas para harmonizar. Aqui, a artista se coloca como prova viva de Stuart Hall, sociólogo britânico-jamaicano, e sua crença em um sujeito cuja identidade é, constantemente, conduzida à mudança através das interpelações dos sistemas culturais.
Nas canções seguintes, Tudo Pra Amar Você e Tudo Seu, Marina segue explorando as digitais da primeira versão de sua persona, mas sob novos arranjos. Em Tudo Pra Amar Você, primeiro single do álbum, a artista invoca sua brasilidade, veste-a em afrobeat e abre caminhos para narrar os grandes centros urbanos não mais sob a luz do Trap e suas vertentes, mas debaixo das asas do Pop. O mesmo pode ser visto em Tudo Seu, mas, aqui, sem o afrobeat. Na quarta faixa de Vício Inerente, Sena potencializa tudo aquilo que há de mais brasileiro na música e convida seus ouvintes à dança. A canção, pensando em projetos recentes, poderia facilmente integrar Ritual (2019), disco de estreia de Davi Sabbag, onde, em faixas como Maçã, bebe (e cita) a Guitarrada. A partir daqui, Marina passa a criar ainda mais distinções entre as canções que compõe seu segundo projeto solo.
Em Mande Um Sinal, Sena surge trajada em R&B com uma composição que, se levada ao violão, faria parte de uma apresentação de Gal ao lado de O Que É Que Há, ou seja, ponto alto do disco, que é mantido por Me Ganhar, um aceno de Marina ao Reggaeton. Na sexta canção, é possível visualizar, mesmo que induzido pelos ouvidos, Sena pelas ruas em um catsuit derramando seu DNA por vias jamais exploradas antes. Porém, os encantos de suas antecessoras não são mantidos por Que Tal, parceria com Fleezus, que, de maneira monótona, mantém a latinidade de Marina em voga.
É com Meu Paraíso Sou Eu que a artista de Taiobeiras remonta Vício Inerente e, através de sua voz única e, por vezes, polêmica, traz excentricidade ao disco. A única falha da faixa é sua duração, que, para tempos de consumo rápido, faz sentido, mas, a nível de apreciação de desenvolvimento, deixa a desejar. Sua sucessora, Partiu Capoeira, mantém a linha e se apresenta enquanto ótima opção de single. Com levadas da música baiana, Sena, mais uma vez, deixa transparecer a influência de Gal em sua artisticidade. Aqui, soa como se a Gal de Índia (1973) surgisse em 2023, com bases de Trap e menos afinco à construção das melodias e letra. Este flerte com o pagodão baiano logo é substituído pelo Funk, com Mais de Mil que, apática e repetitiva, falha em suceder momentos prazerosos do álbum. A faixa merece, no entanto, menção honrosa por não soar pouco original, o que é comum aos artistas Pop que tentam, de alguma forma, adentrar os bailes. Isso só é possível porque Sena reconhece seu lugar e tenta fundir elementos do gênero à sua essência para, assim, manter as rédeas de sua criatividade.
Nas últimas duas faixas, Sonho Bom e Pra Ficar Comigo, Marina mantém-se apática, porém, em menor escala. O brilhantismo fica para os últimos segundos de Pra Ficar Comigo, que mostra-se bem mais energético que os minutos que os antecedem.
Com Vício Inerente, Marina Sena mantém seu nome nos holofotes e adiciona inúmeros adornos a ele, mostrando ao público a elasticidade que carrega dentro de si enquanto artista. O disco não chega a ameaçar o posto de seu projeto de estreia, mas, com êxito, cumpre o papel de, enquanto manifestação artística, registrar os cenários que compõe o entorno da artista. Agora, resta curiosidade para quais serão as músicas trabalhadas promocionalmente e o que a cantora reserva para seu terceiro disco.