Madonna para além das pistas
Fadar a discografia de um artista aos seus singles de maior sucesso é um erro habitual, não só por parte do grande público, mas por parte dos que produzem conteúdo crítico sobre música, mas sem grande repertório.
E é este erro que possibilita que, em 2023, digamos que Madonna é rainha única e exclusivamente das pistas de dança, quando, em seus discos, ofertou bem mais que as canções que atingiram os topos das paradas dance e garantiram o lançamento de Finally Enough Love.
Em seus 14 álbuns de estúdio, Ciccone farejou as tendências e as manejou para caber em sua identidade, o que possibilitou que cravasse seu nome no panteão dos camaleões do mainstream, já que muitos foram os gêneros, construções e referências que utilizou em suas canções. E é na lista abaixo que você conhecerá a Madonna que não se deixa reduzir a Like a Virgin e Hung Up.
Secret Garden — Erotica (1992)
Em seus primeiros anos de atividade, Madonna suscitou debates sobre sexismo, sexo/sexualidade e religião, que a puseram sob a mira de críticos inflamados e ferrenhos, que, por sua vez, submeteram a artista a uma suposta imoralidade. Em resposta, a nada america’s sweetheart deu vida à Erotica, seu quinto disco de estúdio, que propõe uma jornada à feminilidade, sexualidade e romance, temas devidamente embalados por Secret Garden, última faixa do material. Munida de sample de James Brown, nuances de acid jazz e baixo irretocável por Doug Winbush e André Betts, a canção se coloca dentre as melhores já lançadas por Madonna, que posicionou-se com excelência na composição.
Love Tried To Welcome Me — Bedtime Stories (1994)
Retornando às atividades após todos os escândalos propostos por Erotica, o icônico livro Sex e suas divulgações, Madonna agraciou o público com Bedtime Stories, seu sexto álbum de estúdio, cujo objetivo, ao primeiro contato, é sanitizar sua imagem, mas que, no desenrolar, é espezinhar participantes da caça às bruxas que lhe foi imposta. Embebido em esoterismos, estranhezas e homenagens a clássicos do surrealismo, como The Giantess de Leonora Carrington, o disco mostrou ao público uma Madonna comprometida a explorar novos espaços de sua criatividade.
Prova disso é Love Tried To Welcome Me, uma balada R&B, que conta com vocais de Madonna, Jessie Leavey e Susie Katiyama, produção de Dave Hall, letra por Madonna, fragmentos de Love III, poema de George Herbert sobre a divindade e seu adorador, e referência a The Heart Is a Lonely Hunter, livro de estreia de Carson McCullers. Ou seja, o que não falta por aqui são nuances para admirar e explorar a profundidade de Madonna.
Has To Be — Ray of Light (1998)
As visões de Madonna passaram por significantes alterações com a chegada de sua primeira filha, o que é nítido em Ray of Light, seu sétimo disco, que aventurou-se na espiritualidade e maternidade, sob o olhar da música eletrônica.
Indispondo-se com a indústria, que apontava caminhos para o formulaico teen pop, a artista conquistou um dos álbuns mais bem sucedidos de sua carreira e colocou singles como Ray of Light e Frozen sob os holofotes. Porém, o que poucos sabem é que parte do brilhantismo do disco foi endereçado ao Japão, com Has To Be, faixa que foi disponibilizada em versão exclusiva do disco, e aos Estados Unidos e Europa, através do CD-Single de Ray of Light (faixa).
A canção é fruto da parceria de Madonna com William Orbit e Patrick Leonard e traz em si uma versão desolada, mas fiel à esperança da cantora. Na letra, é possível acompanhar a narrativa de uma artista que, escolhendo o não-óbvio, passa a questionar os deuses e, aos poucos, a compreender seus processos enquanto lida com as adversidades da vida (Eu deveria ser grata por estar viva/Poderia ser tão pior/Posso nunca ter amado/E nunca compreendido o que mereço… Como os deuses puderam ser tão injustos?).
Introspectiva, Has To Be é um dos pontos altos da carreira de Ciccone, mas um dos menos vistos também.
Gone — Music (2000)
Início dos anos 2000, ápice da juventude no cenário Pop, fórmulas prontas a todo vapor e, mais uma vez, uma Madonna com tino inigualável para inovação. Sob parceria com Mirwais e aparições pontuais de *
Orbit, a artista estreou seu oitavo álbum de estúdio, Music, que contou com elementos de Trance e Country e colocou a cantora em um ambiente não tão uniforme, mas ainda magistral.
Dentre faixas célebres, como a dançante Impressive Instant e a densa Nobody’s Perfect, há destaque para Gone, fruto de três compositores: Madonna, Damian LeGassick e Nik Young.
A décima faixa de Music não poupa esforços para demonstrar a vulnerabilidade da artista e, ao mesmo tempo, suas tentativas incansáveis de não sucumbir à pressão de seu entorno (Me transformar em pedra/Perder minha fé/Eu partirei antes que isso aconteça). E o ápice da canção está para além do estúdio, está nos palcos de sua então turnê, Drowned World Tour, onde os arranjos são minimamente reimaginados e a levada da voz teatral de Madonna conferem ainda mais sensibilidade à faixa.
Rebel Heart — Rebel Heart (2013)
Aos poucos, o toque de Midas de Madonna se amansou. Do lançamento de Hard Candy em diante, a artista, por algumas vezes, perdeu-se no compasso dentro dos estúdios. Porém, mesmo em momentos controversos acerca de seus novos discos, concebeu canções louváveis, como Masterpiece, fruto de MDNA e detentora de um Globo de Ouro, e Rebel Heart, faixa que leva o título do álbum que a contém.
A décima nona e última faixa do décimo terceiro disco de estúdio de Madonna é o que há de mais polido na última década de sua carreira, que, inclusive, é o foco da letra. Por aqui, Madonna narra todas as peripécias, irritações e rebeldias que viveu. Canção primordial para aqueles que desejam compreender a jornada de uma das artistas que pavimentou boa parte dos caminhos que, hoje, são incansavelmente trilhados.
Toda tentativa de resumir Madonna em listas é insuficiente para retratar a eficácia com que a artista compreendeu a elasticidade de suas habilidades e a profundidade de suas referências e conhecimentos.
Portanto, a partir daqui, a versatilidade de Madonna te convida a explorar toda a sua irreverência e inconformidade nos estúdios e palcos. E você pode começar por aqui