Charli XCX — Brat | Moodgate
Um novo sentimento para a música
5917
post-template-default,single,single-post,postid-5917,single-format-standard,bridge-core-3.0.1,qode-news-3.0.2,qode-page-transition-enabled,ajax_fade,page_not_loaded,,qode-title-hidden,qode_grid_1400,vss_responsive_adv,vss_width_768,footer_responsive_adv,qode-content-sidebar-responsive,qode-overridden-elementors-fonts,qode-theme-ver-28.7,qode-theme-bridge,qode_header_in_grid,wpb-js-composer js-comp-ver-6.8.0,vc_responsive,elementor-default,elementor-kit-7

Charli XCX — Brat

“Antes que você fale de crise de meia idade, eu estou ficando mais velha, mais gostosa, meus seios são lindos e eu estou em ótima forma”, declarou Charli XCX no Twitter, em março de 2022. Às vésperas do disco Crash, o comentário veio como resposta a um comentário corriqueiro sobre seu último single, Baby. No tweet, um usuário padrão do chamado stan Twitter expressava, de forma casual, não estar se sentindo muito impressionado pelos recentes lançamentos da cantora. A parte curiosa é que a publicação é, facilmente, uma das menos agressivas presentes numa ala da rede social famosa por exposições vulgares, discussões fervorosas sobre paradas musicais e até mesmo fãs de Ariana Grande que conversam com geladeiras. Por que é, então, que Charli se sentiu compelida a dedicar uma série de réplicas brutais (mas hoje icônicas) a um tweet tão inofensivo vindo de um fã?

A resposta para essa pergunta é menos elaborada do que você imagina: aos 31 anos, a britânica é não só a garota mais descolada da música Pop, mas também uma das artistas mais cronicamente online de sua geração. Altamente irreverente e criativa, Charli é dotada de uma forma rara de autoconsciência que é menos proeminente na atualidade, num mainstream tomado por artistas “relacionáveis”. Enquanto titãs comerciais baseiam suas identidades em escrever sobre experiências fáceis de se identificar com, a imagem de XCX é a de uma festeira irreparável que provavelmente sabe onde fica o melhor after para a sua noite — o tipo de amiga que não deve fingir que entende como você se sente após um término, mas que com certeza vai te convidar para uma festa capaz de curar qualquer mágoa.

Tão indomável quanto enigmática, a cantora conhece seu público como ninguém e parece carregar consigo uma capacidade singular de prever as movimentações de uma indústria que, no passado, já tentou podar sua inventividade. Sua trajetória é uma das mais interessantes da música recente e atesta que popularidade e impacto não são sinônimos, já que, apesar de ser conhecida pelos hits de pouca substância do início de sua carreira, Charli tornou-se, com o passar dos anos, uma das figuras mais autênticas, reconhecíveis e vanguardistas do Pop — tudo isso enquanto cultivava uma audiência capaz de torná-la não uma estrela que lota estádios, mas sim um fenômeno cult inescapável. Talvez por isso ela tenha se sentido tão incentivada a defender Baby (o single) e Crash (o álbum) contra a insatisfação de seus admiradores no Twitter em 2022: XCX habituou seus seguidores a sempre esperar demonstrações ousadas de criatividade em seus projetos, o que, certamente, pode sair pela culatra vez ou outra. 

Mas esse não foi o caso da divulgação do brat, iniciada meses atrás. Quando a capa do disco foi divulgada nas redes, carregando apenas o título do projeto numa fonte Arial desfocada e centralizada num verde limão excêntrico, parecia até uma piada, mas uma piada coerente até demais com a identidade de Charli. Numa entrevista para a Vogue, a britânica questionou o porquê dos fãs se sentirem proprietários das decisões de artistas femininas, como se demandassem que a imagem de uma cantora estivesse estampada em todos os seus trabalhos. Mais do que isso, confessou que a escolha da capa foi deliberada: “eu queria um tom de verde ofensivo e fora de moda que pudesse criar a impressão de que algo está errado”. 

Sarcástico, imprevisível e ao mesmo tempo vulnerável, brat é o projeto mais consistente da carreira de Charli, e também o mais conectado com todas as qualidades que a tornam uma artista tão disruptiva e, em parte, imitável. Para ela, ter a consciência de seu próprio legado e potencial não parece ter tanta graça assim, a menos que todos possam reconhecer o mesmo. É nessa lógica que funciona a frenética Von dutch, o primeiro single do álbum: versos de auto-exaltação complementam uma batida eletrônica opressiva, criada para ser reproduzida no maior volume possível. De modo geral, o carro chefe do brat apresenta também algumas das características mais notáveis do disco, como o egocentrismo tão latente que chega a soar satírico e o pouco espaço para metáforas nas letras, que são objetivas e afiadas como lâminas mesmo quando XCX medita sobre temáticas próprias de mulheres em sua faixa etária, como dilemas sobre a maternidade, o luto e a efemeridade de sua fama. 

brat exibe o quão auto-referencial e consciente a artista é acerca de sua própria persona e, bem como Von dutch, as duas músicas de abertura seguem a tendência de exaltá-la ao máximo. A divertida e confiante 360 ganhou um clipe que reúne celebridades que, em algum momento, tornaram-se it girls na mídia, para encontrar uma sucessora em potencial. A letra da canção atesta o quanto a britânica não se importa em necessariamente fazer sentido, já que, tirada de contexto, a frase “eu estou em todos os lugares, sou tão Julia” seria incompreensível. A pulsante e enérgica Club classics, por outro lado, é uma das faixas chave para compreender o componente metalinguístico do brat, já que, na canção, Charli define não só a si, mas também a vários de seus amigos próximos (como o produtor A.G Cook e a finada SOPHIE) como os autores das músicas que não podem faltar em uma balada. De um ponto de vista empírico, aliás, a euforia proporcionada por escutar Club classics em um clube noturno lotado torna a afirmação de Charli irrefutável.

Ainda assim, não é como se tudo o que o álbum tenha a oferecer sejam mais faixas dançantes para o catálogo de XCX: brat é eficiente em introduzir ao público algumas das reflexões mais sinceras de Charli sobre seu estrelato, e ela não faz esforço para omitir suas frustrações e inseguranças por entendê-las como parte do que a torna tão fascinante como artista. Por mais íntimas que possam ser, essas reflexões estão quase sempre envelopadas por produções vibrantes, criando faixas capazes de embalar festas ainda quando Charli expressa uma vontade de comprar uma arma para atirar em si mesma. Não importa se o desejo é literal ou não, já que Sympathy is a knife, a música em questão, tem um dos refrões mais energizantes do projeto. O mesmo é verdade para o Europop contagiante de Talk talk, cujo a melodia divertida quase mascara a intenção da letra, na qual XCX busca por uma conexão com um parceiro apesar das barreiras impostas por ele. Repaginando o mesmo Europop noventista com mais discrição que Talk talk, a excepcional B2b é carismática e efervescente, exatamente como poderia ser a melhor faixa de uma edição da saudosa coletânea Summer Eletrohits.

Sympathy is a knife e Talk talk são, entretanto, separadas pelo primeiro protótipo de balada do disco, I might say something stupid, que soa como uma interlude entre dois momentos extremamente acelerados. Tais pausas surgem não só entre as faixas na tracklist, mas também nas estruturas das próprias canções, individualmente. A excelente Everything is romantic antecede seu refrão viciante com uma orquestra notavelmente mais melódica e harmoniosa que qualquer outro momento do disco, com exceção da comovente So I. Na contramão das homenagens póstumas mais tradicionais da música, que mais se dedicam a exaltar a figura do finado do que qualquer outra coisa, So I tem como ponto central os arrependimentos de Charli em sua relação com SOPHIE, como não ter aceitado um convite para jantar ou não ter atendido uma ligação no Natal, quase um mês antes da morte da artista.

I think about it all the time é outro momento sonoramente distante dos hits dançantes do brat, já que, nela, a britânica se despe da postura audaciosa para fazer alguns questionamentos bastante vulneráveis. Isso é feito da maneira mais Charli XCX possível, com uma produção que não recorre aos clichês insípidos tão comuns em faixas Pop confessionais. O que definitivamente ajuda, também, é que a canção não dura mais do que deveria, entregando sua mensagem sem perturbar a pista de dança caótica do brat

Enquanto isso, músicas como Girl, so confusing e Mean girls demonstram o eterno interesse de XCX em desconstruir as fórmulas padrões do Pop, em especial o das duas décadas anteriores. A primeira, aliás, é especialmente interessante por, ao lado de Sympathy is a knife, descrever conflitos e sensações de estranheza com outras mulheres da indústria. Embora inespecíficas, as letras deixam oportunidade para associações com Lorde e Marina (no caso de Girl, so confusing), e FKA Twigs e Taylor Swift (no caso de Sympathy is a knife). Apesar de desentendimentos pontuais com outras celebridades, Charli é conhecida por parcerias de imensa qualidade com outras artistas e, acima de tudo, pelo hábito de apoiá-las e impulsioná-las a partir de sua própria fama. 

A capacidade de subverter não só essas, mas qualquer expectativa, ao mesmo tempo em que mantém-se fiel a sua própria sonoridade, é um dos maiores trunfos do brat. Estrondoso, irônico e absurdamente divertido, o disco é irretocavelmente hábil em criar uma atmosfera que, embora absurdamente potencializada no ambiente certo, faz qualquer reunião modesta parecer uma festa inesquecível. Não por coincidência, é a catártica e frenética 365 que se encarrega de voltar ao início do disco em um loop que, bem como as melhores noitadas, não tem hora para terminar.

Nota: 9.2

About the Author /

joaomothe@moodgate.com.br

Post a Comment