Sleep Token nunca foi uma banda de lançamento tradicional. Desde o início, cultivam o mistério como parte da experiência artística, e com o anúncio de seu novo álbum, Even in Arcadia, essa característica foi levada a outro patamar. Muito antes de qualquer nota ser tocada oficialmente, a banda iniciou uma narrativa enigmática que envolveu seus fãs em um verdadeiro jogo de decifração.
Tudo começou com um vídeo publicado em uma nova conta no TikTok. Na legenda, o link para um site misterioso — showmehowtodanceforever.com — apresentava uma interface minimalista, com letras espalhadas aparentemente de forma aleatória. Cada letra, ao ser clicada, alterava a disposição das demais, criando padrões visuais sem sentido imediato. Fãs experientes com linguagem de programação e design web decidiram então investigar o código-fonte da página. Foi lá que encontraram pistas ocultas: uma coordenada geográfica e um desenho de portal formado por caracteres de teclado.


A coordenada levava diretamente ao Shepherd’s Monument, um memorial localizado em Staffordshire, Inglaterra. A escultura carrega a enigmática inscrição “OUOSVAVV” entre as letras “DM”, que historicamente significam Dis Manibus — “dedicado às sombras”. Procurando outras fotos sobre o monumento é possível perceber essas letras dispostas de forma misteriosa na base da escultura. A inscrição é dividida em duas linhas, com oito letras na primeira e duas na segunda, colocadas nas extremidades inferiores, algo comum em túmulos romanos, mas que aqui adquire um ar ainda mais críptico.


Dentro do pórtico do Shepherd’s Monument, um arco rusticado emoldura um relevo inspirado na pintura clássica Et in Arcadia Ego, de Nicolas Poussin. A escultura, feita por Peter Scheemakers, mostra uma mulher e três homens, dois dos quais apontam para um túmulo. Essa representação foi adaptada da obra original e inclui um sarcófago extra no topo do túmulo principal, reforçando o simbolismo da morte.



“Et in Arcadia ego” pode ser traduzido como “Eu também estou na Arcádia”, ou “Eu estou, mesmo na Arcádia”. A frase ecoa o conceito de memento mori, uma lembrança de que a morte está sempre presente, mesmo nos cenários mais idílicos. É um tema recorrente desde o Renascimento, presente em pinturas, arquitetura e literatura, como uma forma de meditação sobre a efemeridade da vida.


Arcádia, por sua vez, é mais do que uma região da Grécia Antiga. No imaginário coletivo do Renascimento e do Romantismo, ela representa um paraíso pastoril, um local utópico onde a vida é simples e em harmonia com a natureza. Ao conectar esses símbolos, Sleep Token tece um fio narrativo entre morte, identidade e transcendência.
Aqueles que conseguiram resolver o enigma no site foram presenteados com uma imagem que trazia a frase: “Eis uma divisão”. Uma mensagem ambígua, que pode representar tanto a cisão interna quanto uma separação entre eras — o fim de um ciclo e o nascimento de outro dentro da mitologia construída pela banda. Com isso, o nome do álbum Even in Arcadia foi revelado. Uma referência tanto à pintura quanto ao conceito idealizado de Arcádia: um espaço utópico de paz, simplicidade e comunhão com a natureza.


No entanto, ao retomar a frase clássica “Et in Arcadia ego”, a banda subverte a ideia de paraíso, lembrando que até mesmo no refúgio mais puro, a sombra da mortalidade e da dor pode se infiltrar. É a beleza em contraste com a perda, o anonimato frente à fama, o sagrado diante do profano — temas recorrentes na obra do grupo.
Arcádia também é um símbolo recorrente na cultura pop contemporânea, desde músicas de artistas como Lana Del Rey até filmes, séries, jogos e romances. Ao escolher esse título, Sleep Token não apenas dialoga com a tradição clássica, mas a reinventa, criando uma nova camada de interpretação: um espaço de contemplação entre a realidade e a fantasia, entre a identidade e o vazio.
É necessário levar em consideração que a banda trabalha bastante a fantasia e mistério. Sleep Token é uma banda britânica criada em 2016, que desde o momento da sua criação todos os integrantes usam roupas pesadas, maquiagem e principalmente: máscara para cobrir seus rostos, nomes fictícios (Vessel, II, III e IV) e tudo necessário para preservar a identidade pessoal dos 4 integrantes. Isso acabou sendo suscetível para alguns grupos tentarem solucionar algo que não tem finalidade e entra em desacordo com a arte da banda, como tentar descobrir identidade dos integrantes e divulgar pela internet.
Nos últimos tempos, essa obsessão por informações pessoais ultrapassou os limites da curiosidade. Supostas certidões de nascimento de membros do Sleep Token foram divulgadas em redes sociais e fóruns como o Reddit, o que motivou a exclusão de todas as postagens no Instagram oficial da banda e o desaparecimento de um dos integrantes, conhecido como “III”, das redes sociais. Essa violação de privacidade foi recebida com forte reprovação por parte dos fãs que compreendem e respeitam o conceito artístico do grupo, mas também revelou um problema cada vez mais presente na cena alternativa: a toxicidade de parte do fandom.
A situação do Sleep Token não é isolada. A banda Bad Omens também passou por experiências semelhantes. O vocalista Noah Sebastian teve não só seu nome e fotos pessoais expostos, como também documentos delicados, como a certidão de óbito de sua mãe, foram compartilhados publicamente. Detalhes íntimos de sua vida familiar, incluindo histórias dos avós que o criaram e a ausência paterna, foram transformados em conteúdo de entretenimento por pessoas que se dizem fãs. Além disso, relacionamentos passados de integrantes da banda também foram alvo de invasões, com ex-namoradas se aproximando de comunidades online para compartilhar informações privadas sob o pretexto de serem apenas fãs.
Esse comportamento levanta questionamentos urgentes sobre os limites do fandom. Até onde vai a falta de senso, educação e respeito por parte de quem consome arte? Se nem aqueles que são admirados e amados por sua música são respeitados em sua individualidade e direito à privacidade, o que esperar da relação com o público em geral? A música, nesse contexto, passa a carregar também a dor de quem precisa se proteger até de seus próprios admiradores.
Em meio a essa tensão, músicas como Caramel ganham novas camadas de interpretação. A faixa apresenta uma sonoridade mais dançante, mas sua letra é carregada de vulnerabilidade e frustração. É a expressão lírica de alguém que deseja se conectar através da arte, mas que é traído pela curiosidade desmedida do público. O Sleep Token segue fiel à sua essência, mantendo as máscaras, o mistério e a profundidade emocional, enquanto enfrenta a dolorosa realidade de uma fama que, em vez de acolher, invade.
O cenário atual exige reflexão. Bandas e fãs deveriam caminhar juntos, unidos pela música, não separados por atitudes invasivas. Preservar o anonimato de artistas que assim escolheram é, acima de tudo, respeitar a proposta artística e o direito ao limite. A arte não exige explicações ou nomes reais. Exige empatia.
Este pré-lançamento, enraizado em enigmas e simbolismo, não é apenas marketing — é uma extensão natural da proposta artística da banda. Eles não apenas anunciam um novo álbum; constroem uma experiência imersiva que começa muito antes da primeira faixa ser lançada. E para os que acompanham a trajetória de Sleep Token, essa jornada é parte fundamental da catarse que virá com Even in Arcadia.