Na segunda passagem da turnê pelo Rio, Gilberto Gil entrega um espetáculo comovente, repleto de música, história e encontros memoráveis na Marina da Glória.
Quando Gil sobe ao palco, com sua aura clara e sua alma cheirando a talco, o público não sabe dizer se está diante do imortal, do ministro, do doce bárbaro ou de um menino que sorri e dança com um mundo inteiro a ser descoberto e musicalizado. E talvez seja exatamente essa ambiguidade mágica que torne Gilberto Gil tão único: um artista que, aos 82 anos, segue em movimento.
Tempo Rei, turnê que celebra a vida e a obra de Gil, é mais do que um show. É um tributo em carne, osso e som à história de um dos maiores nomes da música brasileira. Da concepção estética ao repertório escolhido, cada detalhe é pensado para emocionar e eternizar.

Um percurso pelas eras de Gil
As 30 canções do set percorrem todas as fases da carreira de Gil, passando pela Tropicália à ancestralidade africana, do samba reggae ao rock, do pop filosófico ao baião nordestino. É como se cada música reabrisse uma gaveta de memórias do nosso Brasil.
A primeira canção já dá o tom: “Palco” abre os trabalhos com energia e groove, seguida de “Banda Um”. Em “Tempo Rei”, a música que batiza a turnê, Gil se debruça sobre o próprio tempo com serenidade, com poesia, com sabedoria.
“Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei…” quando Gil canta esses versos, o relógio para e a eternidade se acomoda no violão. No Rio de Janeiro, o tempo se curva pra ouvir Gilberto Gil cantar. ⏳✨
— Moodgate ⚡️ (@Moodgate_) June 1, 2025
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Na sequência, uma linda homenagem ao mestre do forró Dominguinhos com “Eu Só Quero Um Xodó”. Gil sorri, dança e a plateia se rende de vez. O clima é leve, íntimo, e nos lembra das raízes nordestinas que sempre pulsaram em sua música.
Logo depois, ele nos leva para a Bahia: “Eu Vim da Bahia” e “Procissão” (essa com ares quase litúrgicos) abrem espaço para “Domingo no Parque”, pedra fundamental da Tropicália.
A interpretação de “Cálice”, de Chico e Gil, é um dos momentos mais impactantes da noite. Antes da música, Chico Buarque surge em vídeo, contextualizando a canção e lembrando sua força histórica. No palco, a obra ganha novas camada, especialmente em tempos recentes. A resposta do público é imediata: gritos de “Sem anistia!” ecoam pela Marina da Glória.
Na sequência, “Back in Bahia”, “Refazenda” e “Refavela” formam um bloco de pura brasilidade, com arranjos bem amarrados e vocais suaves. Gil, com seu jeito leve, nos leva por entre memórias, vivências e paisagens que atravessam sua trajetória.
Reggae, samba e encontros
O momento reggae aparece com força em “Não Chore Mais (No Woman, No Cry)”, versão imortalizada por Gil, que emociona e faz a Marina cantar em coro. Depois, “Extra” e “Nos Barracos da Cidade” (incluída especialmente nesta apresentação) ganham reforço de um time de músicos amigos: Liminha, Celso Fonseca, Jorge Gomes e Serginho Chiavazzoli. O público, pego de surpresa, responde com entusiasmo.
“A Novidade”, parceria com os Paralamas, e o suingue irresistível de “Realce” e “Punk da Periferia” colocam todo mundo para dançar. Gil brinca e se diverte com a própria criação.



A beleza está nos detalhes
“Se Eu Quiser Falar com Deus” vem com arranjo minimalista, quase sussurrado, num clima de confissão. É nessa sequência que vem “Drão”, e com ela um dos momentos mais espontâneos da noite: logo nos primeiros acordes, o barulho de um avião decolando do Santos Dumont corta o ar. Gil para, observa e diz com doçura: “Vai com Deus”. E, sem perder o compasso, volta: “Drão, o amor da gente é como um grão…”. Num desses instantes que só existem nos shows ao vivo, e que só ganham beleza quando há um artista como Gil no palco, com leveza suficiente para transformar o barulho de um avião em parte da poesia.
A emoção atinge o pico com “Estrela”, em dueto com Djavan. Duas vozes únicas, dois mestres em harmonia. O público, quase em transe, acompanhou em lágrimas a delicadeza da canção. O abraço entre os dois ao final da música é o retrato de uma noite histórica.
O encerramento é celebração
Na reta final, Gil entrega clássicos como “Esotérico” e “Expresso 2222”. A plateia se solta, canta alto, se emociona. Em “Andar com Fé” e “Êmoriô”, o clima é de axé e ancestralidade. Em “Aquele Abraço”, um drone sobrevoa todo o público, mostrando no telão os rostos e sorrisos de todos os presentes.
O bis vem com “Esperando na Janela”, em versão vibrante, e a apoteose final: “Toda Menina Baiana”, que faz o público vibrar e cantar ao lado do mestre.
Um tempo que ainda pulsa
A cada canção, Gilberto Gil reafirma sua grandeza. Mais que um compositor ou cantor, ele é uma força criativa que ajudou a moldar a alma brasileira. Na turnê Tempo Rei, ele nos lembra que o tempo não é inimigo, é parceiro. Que envelhecer é também celebrar o que se viveu. E que estar em cena é a maior declaração de amor que um artista pode fazer à sua obra e ao seu público.
Gil nos oferece sua presença. Suas rugas, sua voz agora mais suave, seu corpo dançante, seus olhos curiosos. E a sensação de que, mesmo depois de tantos carnavais, ele ainda dança com o tempo e nos convida, com doçura, a dançar com ele.