Sleep Token nunca foi uma banda de lançamento tradicional. Desde o início, cultivam o mistério como parte da experiência artística, e com o anúncio de seu novo álbum, Even in Arcadia, essa característica foi levada a outro patamar. Muito antes de qualquer nota ser tocada oficialmente, a banda iniciou uma narrativa enigmática que envolveu seus fãs em um verdadeiro jogo de decifração.
Tudo começa com um site interativo e misterioso que, ao ser explorado por fãs com conhecimento técnico, revela pistas escondidas no código-fonte — incluindo coordenadas geográficas e símbolos. Essas coordenadas levam ao Shepherd’s Monument, um memorial real na Inglaterra que contém a enigmática inscrição “OUOSVAVV” entre as letras “DM”, historicamente associadas à morte. A escultura, inspirada na obra Et in Arcadia Ego de Nicolas Poussin, introduz um simbolismo profundo: mesmo em um paraíso idealizado, a morte está presente.
Esse conceito se conecta diretamente à escolha do nome do álbum. “Arcádia”, na tradição clássica e renascentista, representa um espaço utópico de simplicidade, paz e comunhão com a natureza. Entretanto, ao adotar a frase “Et in Arcadia ego” — que pode ser interpretada como “Mesmo na Arcádia, eu (a morte) estou” —, a banda evoca a tensão entre idealismo e mortalidade, luz e sombra, beleza e efemeridade. Arcádia também é visto em massa na cultua pop, artistas já utilizaram o termo para título de música, está presente em videogames, e jogos de tabuleiro e até personagem de desenho em quadrinho. Ao revelar o nome do disco com a mensagem “Eis uma divisão”, Sleep Token sugere uma ruptura simbólica: um ponto de transição na sua mitologia artística, talvez entre eras, identidades ou visões de mundo.
Nos últimos tempos, essa obsessão por informações pessoais ultrapassou os limites da curiosidade. Supostas certidões de nascimento de membros do Sleep Token foram divulgadas em redes sociais e fóruns como o Reddit, o que motivou a exclusão de todas as postagens no Instagram oficial da banda e o desaparecimento de um dos integrantes, conhecido como “III”, das redes sociais. Essa violação de privacidade foi recebida com forte reprovação por parte dos fãs que compreendem e respeitam o conceito artístico do grupo, mas também revelou um problema cada vez mais presente na cena alternativa: a toxicidade de parte do fandom.
A jornada começa com Look to Windward, uma faixa que soa como se estivéssemos diante de uma tela de “start”. Os sons imersivos criam uma atmosfera nostálgica, como se estivéssemos dentro de um videogame ou de um filme prestes a alcançar um clímax emocional. O vocal de Vessel entra como se abrisse uma narrativa que mistura o divino com o terreno, evocando imagens como o jardim dos deuses e a escuridão de um eclipse. A música evolui como uma história — com início, meio e fim catártico — e fecha com uma combinação emocionante de piano e guitarras que acentuam esse sentimento de descoberta e aceitação. Os elementos líricos, como martelo e pena, já introduzem o simbolismo denso que permeia o álbum, enquanto o visual da queima das recompensas se conecta com a estética do visualizer de Emergence.
Delicada na superfície, mas carregada de intensidade, Emergence começa com um piano suave e contemplativo, que logo dá lugar a elementos eletrônicos futuristas. A faixa parece encenar um reencontro — entre paixões, entre peles renovadas, entre o toque e o desejo. A bateria em meio tempo dá uma sensação de deslocamento, uma quebra que torna tudo ainda mais íntimo. O vocal de Vessel guia essa declaração emocional com suavidade, até que guitarras e saxofone, interpretada pela talentosa Gabi Rose, assumem os minutos finais, elevando a música para uma explosão que é, ao mesmo tempo, sensual e existencial. Emergence é o som de dois mundos colidindo — carne e espírito, passado e presente, ruína e redenção.
Ritmada, direta e cativante, Past Self mergulha de cabeça em influências de R&B. Os versos têm um groove acentuado pela bateria eletrônica, que cria uma base constante e quase fria, enquanto o vocal assume toda a expressividade emocional da faixa. O refrão (“Eu sequer sei quem eu costumava ser, nada é o mesmo”) funciona como aquele tipo de chiclete musical que gruda sem esforço. Mas a profundidade está ali: é o momento da reflexão sobre o que essa relação — iniciada em Emergence — mudou no eu lírico. Fica claro que há um ponto de bifurcação: olhar para trás ou seguir adiante reescrevendo a própria história.
Com guitarras mais presentes e atmosfera hipnótica, Dangerous é uma das faixas mais curtas do álbum, mas não menos impactante. O instrumental mergulha em camadas envolventes que capturam o ouvinte em um transe que passa num piscar de olhos. Há um tom de sedução sutil, mas também uma provocação — como se estivéssemos sendo chamados a dançar no fio da navalha. Ao final, uma frase marcante aparece: “me mostre como dançar para sempre” — a mesma que foi usada no site enigmático do pré-lançamento do disco, fazendo desta faixa um elo simbólico dentro do quebra-cabeça que é Even in Arcadia.
Com uma sonoridade provocadora e multifacetada, Caramel soa como uma carta aberta — ou melhor, um desabafo — sobre a relação do Sleep Token com seus fãs mais obsessivos. O eu lírico confronta a fixação na identidade dos membros da banda, jogando luz sobre a superficialidade de quem se importa mais com o “quem” do que com o “o que”. A faixa brinca com gêneros e expectativas: reggaeton, elementos eletrônicos, guitarras distorcidas, guturais e até blast beats convivem em um instrumental caótico e propositalmente desconfortável. É quase como se a banda gritasse: “Vocês querem a verdade? Então encarem ela sem filtro.” Um momento cru e confrontativo do álbum.
A faixa-título é o coração do álbum, Even in Arcadia se apresenta com um piano suave e cordas que adicionam camadas de emoção, onde a voz encontra o espaço ideal para florescer. Tudo nela — dos timbres aos arranjos — serve à tristeza e à contemplação. A faixa se conecta à mitologia do projeto, simbolizando a chegada do eu lírico à Arcádia, após uma jornada marcada por sofrimento e transformação. Aqui, as lâminas e asas do passado (referências às faixas Chokehold e Euclid) são abandonadas. A chegada ao destino faz com que os antigos artifícios já não sejam mais necessários. É um epílogo melódico, um sussurro após a tempestade, em que até o paraíso carrega o eco da dor.
Provider inicia-se com vocais quase solitários (“Eu quero ser um provedor”) e cresce gradualmente com camadas eletrônicas, guitarras e bateria que pulsam em sincronia com a narrativa. A canção equilibra intensidade e sensualidade com precisão, criando uma ambientação noturna e íntima. A história gira em torno de um reencontro, onde mágoas antigas encontram na noite e nos corpos um meio de redenção. As palavras tornam-se secundárias diante do toque, e ao final, surge uma promessa: “Mesmo na luz do dia, eu posso te dar o que você quer”, com a intenção de prover além dos desejos noturnos e acompanhar em momentos a luz do dia.
Sensível e crescente, Damocles parte do piano e vocais românticos, até que os instrumentos se tornam mais incisivos, rompendo o véu da delicadeza com intensidade crescente. A faixa resgata o mito de Dâmocles, cortesão que desejava o poder de um rei, mas ao sentar-se no trono, viu-se sob a ameaça de uma espada suspensa por um fio. A metáfora aqui é clara: o poder vem com o peso da ansiedade e da iminência da queda. Vessel transforma esse mito em confissão, revelando o custo do reconhecimento. Referências à turnê e a ausência de retratos revelam o medo do esquecimento, mesmo sob os holofotes. Sons que evocam fitas de videocassete ecoam como tentativas de preservar memórias antes que desapareçam. A ascensão trouxe palmas, mas não trouxe alívio.
Gethsemane mostra, em mais de 6 minutos de música, a essência de Sleep Token, ousar na experimentação mantendo a narrativa misteriosa. Com toda sua versatilidade, Sleep Token introduz nessa música o gênero math rock, porém com uma afinação de guitarra que se assemelha aos midwest emo. A parte pesada de distorção com bateria também tem um andamento diferente da marca registrada pela banda, uma ótima experimentação. Enquanto a ponte e outro tem uma batida eletrônica com um rap mais agressivo devido a temática de raiva por uma briga sequenciada de um término, não tão bem aceito por Vessel.
O encerramento de Even in Arcadia não poderia ser mais poderoso. Infinite Baths se inicia com uma atmosfera nostálgica, encerrando o ciclo que foi aberto lá atrás com Look to Windward. Com mais de oito minutos de duração, a faixa transita entre introspecção e caos, culminando no primeiro — e único — momento de screamo do álbum. Os versos “eu estou tão cansado por dentro” são como uma faca na alma, um grito de cansaço e persistência. A faixa ecoa Heráclito: não se entra duas vezes no mesmo rio. Vessel reflete sobre as mudanças que a ascensão trouxe, e mesmo cercado por um oceano de titãs, ele permanece. Cansado, mas vivo. Exausto, mas ainda lutando. Um final catártico e necessário.
Even in Arcadia não é apenas um álbum — é um ritual. A cada faixa, Sleep Token nos guia por um caminho de revelações, perdas e epifanias, onde o som se torna linguagem e o silêncio, significado. Há uma entrega quase religiosa em sua construção, como se cada nota e pausa carregasse o peso de algo não dito, mas profundamente sentido. É um convite à vulnerabilidade, ao enfrentamento das sombras e à busca de redenção. Ao final da jornada, não saímos ilesos — saímos transformados, com a certeza de que, mesmo no paraíso, a dor tem seu lugar, e é ela quem dá forma à beleza mais autêntica.
Sleep Token entrega mais uma oferenda incrível, com uma narrativa que mescla com relações humanas, público-alvo, mitologia, mistérios e referências a suas outras obras. A versatilidade dos instrumentistas choca tanto para aproximar novos fãs, assim como afastar críticos aos trabalhos prévios. Porém, é impossível negar tamanha habilidade de cada um. A escrita e expressão de Vessel é única e memorável. O hype é mais uma vez justificado.