Hole — Live Through This | Moodgate
Um novo sentimento para a música
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Hole — Live Through This

Em 1994, todos tinham algo a dizer sobre Courtney Love, uma das figuras mais impopulares dos Estados Unidos. “Todo mundo já ouviu um boato ruim sobre mim, e isso é chic”, declarou a vocalista do Hole em setembro daquele ano, em uma entrevista que foi ao ar quatro meses após a morte de Kurt Cobain, seu marido e frontman do Nirvana. Dois meses antes, Kristen Pfaff, baixista da banda de Love, foi a óbito pela fatal e última de uma sequência de overdoses. Na mesma ocasião, quando questionada sobre a natureza quase profética das composições do disco Live Through This, lançado na semana seguinte ao falecimento do cônjuge, Courtney rebateu: “Eu não sou vidente, minhas letras são. E as pessoas voltam ao trabalho; é exatamente o que eu estou fazendo, e acho que sou muito boa nisso”.

Notoriamente, nem todo mundo morria de amores por Courtney Love. Dave Grohl, então baterista do Nirvana, nunca omitiu seus desafetos com a viúva de seu colega de banda para a mídia e foi apenas mais um dos tantos que compuseram letras sobre ela. A maioria delas, aliás, pareciam refletir um sentimento geral e distorcido do público ao adotar uma abordagem particularmente cruel. I’ll Stick Around, do Foo Fighters, relatava a percepção de Grohl sobre os escândalos forjados por Courtney para os tabloides, enquanto Professional Widow, de Tori Amos, fazia uma referência direta a morte de Cobain ao mencionar as substâncias ilícitas que o casal fazia uso, além de rotular a artista como “interesseira” que perseguia estrelas do rock por popularidade como uma verdadeira “viúva profissional”.

A infâmia e a má reputação entre colegas do nicho, no entanto, não pareciam problemas para Love. Os adjetivos que lhe eram tão constantemente lançados pela mídia tornaram-se munição. Foram vestidos, usados e apropriados para que, nos primeiros acordes de Violet, a faixa de abertura do segundo álbum de estúdio do Hole, se estabelecesse o tom bruto e repleto de personalidade que torna-se uma constante ao longo do disco. “Vá, tire tudo de mim, eu te desafio”, esbraveja Courtney, não apenas demandando, mas desafiando que seus interlocutores a dispam do que bem quiserem ao relatar todos os assédios midiáticos e pessoais que sofrera ao longo dos anos. Violet é o testamento de que Love não atendia aos estereótipos erráticos que lhe eram atribuídos, mas que dominava suas narrativas mais do que lhe davam crédito por.

Além de admitir sarcasticamente ser desprovida de alma, a artista ordena que o ouvinte esqueça tudo o que já ouviu sobre ela: Live Through This é seu e não poderia ter sido escrito e performado com tanta personalidade e cólera por mais ninguém, contestando os boatos de que seu falecido marido era o real autor das letras do disco. Por outro lado, uma declaração de Courtney no programa de Jools Holland em 1995, além de elementos específicos na letra de Violet, parecem sugerir que a música é, na verdade, direcionada para o vocalista do The Smashing Pumpkins, Billy Corgan, com quem a artista teve um breve relacionamento no início de 1991. “Essa música é sobre um idiota que eu enfeiticei e que agora está perdendo todo o cabelo”, comentou Love no programa logo antes dos primeiros acordes da música.

A injustiça com a qual era tratada pela imprensa é, aliás, temática de outras faixas do LP. Em Miss World, uma referência à icônica capa do álbum, Love assume a persona criada pela mídia sobre si e convida o ouvinte a assistí-la “quebrar e queimar”, e que ninguém o julgaria por isso. A inebriante Asking For It, por outro lado, utiliza a experiência de assédio vivenciada pela vocalista durante um show para questionar a absurdidade presente no argumento de que vítimas podem “pedir” por isso caso estejam usando roupas específicas ou se comportando de uma certa maneira supostamente reprovável.

Apontada pelos fãs, a similaridade temática entre as fotos promocionais do álbum Sour, de Olivia Rodrigo, e do Live Through This foi até mesmo comentada por Courtney Love, que acusou a cantora adolescente de tê-la utilizado como referência

Jennifer’s Body é marcada pelo conteúdo lírico morbidamente devastador. Comparada a Polly, faixa do Nevermind do Nirvana, a quinta canção do Live Through This trata do aterrorizante caso exaustivamente dissecado pela mídia em 1977 de Colleen Stan, verbalizando a indignação e o protesto de Love acerca dos episódios de horror vivenciados pela jovem e como homens sempre parecem ser isentados da culpa mesmo nos casos mais bárbaros (“Mate a família, salve o filho”). Altamente desconfortante, a canção é a referência para o longa-metragem de mesmo nome de 2009 dirigido por Diablo Cody e estrelado por Megan Fox. Mais do que uma história trágica, a música, bem como Asking For It e Rock Star, parece tratar também do passado de Courtney quando se considera que ela confessou ter recorrido ao trabalho em casas noturnas de Los Angeles em inúmeras ocasiões, atividade que a tornava vulnerável a diversos perigos. “(Trabalhar como stripper) foi o que financiou a minha banda, e eu precisei economizar muito ainda assim”, revelou em entrevista de 2013 para o LA Weekly. Os primeiros versos de Asking For It, aliás, parecem mencionar a percepção da artista sobre o período em questão ao sugerir que se sentia “mais barata” ao se disponibilizar como um produto aos clientes (“Toda vez que eu me vendo para você/Me sinto mais barata do que preciso”).

É em Doll Parts, no entanto, que o Hole criou uma de suas faixas mais cultuadas pelos fãs, além de ter, também, sido abraçadapelo mainstream. Courtney interrompe o fluxo repleto de ira, sarcasmo e revanchismo presente nas faixas antecessoras para produzir uma fatídica confissão romântica. Ao comparar-se com uma boneca, a artista assume-se, mais uma vez, vulnerável: “Eu o amo tanto que se torna ódio/Algum dia você vai doer como eu”, canta Love em uma letra escrita em 1991 e inteiramente dedicada a Kurt Cobain, objeto de admiração e obsessão de milhares de outras garotas na época.

Mulheres, aliás, compunham a maior parcela de ouvintes mais fanáticos pelo Hole. Pareciam compreender a semântica, a raiva e os dilemas emulados pela banda e pela própria Courtney, ainda que estes fossem entoados na expressão de gritos ao invés de vocais mais suaves e populares à época. Esse componente era o que parecia cativar ainda mais a audiência. Tratava-se de um tipo de cólera que, para homens, poderia soar infundada ou “lunática”, conforme avaliou um crítico da Rolling Stone no lançamento do álbum . A vingança e a imensurável e incontrolável raiva, no entanto, estavam presentes na gênese da banda, que foi nomeada em homenagem à tragédia grega de Medeia, uma mulher tão enfurecida com a infidelidade de seu marido que decide assassinar seus próprios filhos para que ele experimentasse a dor que ela havia sentido.

“Às vezes sinto que ninguém realmente se dedica para escrever sobre algumas coisas no rock e que há um certo ponto de vista feminino que nunca teve espaço”, comentou Courtney ao Melody Maker em 1991, perto da época de lançamento do primeiro disco do Hole, Pretty on the Inside. Marcado pela sonoridade mais agressiva, o álbum foi sucesso de crítica no Reino Unido, mas falhou em catapultar a banda à fama como fez seu sucessor. Ajudou, no entanto, a estabelecer uma base de fãs sólida, embora inicialmente tímida e majoritariamente feminina ao Hole desde o princípio. Também em 1991, durante uma apresentação de Smells Like Teen Spirit, Kurt Cobain verbalizou uma notória declaração de amor para Courtney em uma transmissão para o programa inglês The World. A partir daquele momento, a vocalista passou a ser atacada não só pela mídia, mas pelos seguidores e fãs que idolatravam Cobain em certa medida. Essa parcela, em especial, promovia insultos frequentes, acreditando que Courtney estaria se aproveitando do vocalista.

Mesmo assim, em outros termos, em uma entrevista de 2011 à Dazed, Love confessou que, apesar de sempre ter se considerado feminista, “nunca foi considerada feminista o bastante por parte da esquerda”. Quaisquer que sejam os argumentos, o principal, para seus maiores críticos, residia nas constantes rixas e ocasiões desconfortáveis travadas com outras mulheres. A faixa mais punk do álbum, She Walks On Me, por exemplo, é, segundo a cantora, sobre “uma garota que sempre tenta copiá-la” e que, enquanto ela é tratada como desviante por seu estilo, outras são aplaudidas por plagiá-lo, em um alusão a disputa com Kat Bjelland, que, como alegado por Courtney, havia “roubado muitas coisas dela”, de suas roupas a tentativas de envolver-se com Kurt. Similarmente, diversas mulheres proeminentes da indústria tiveram seus desarranjos com a artista ao longo da década de 1990 e até mesmo antes, como Kathleen Hanna, do Bikini Kill, e Madonna.

Kat Bjelland, no entanto, co-compõe a faixa dez do Live Through This, I Think That I Would Die, que, assim como a hipnoticamente agressiva Plump, um dos destaques do álbum, registra os sentimentos da vocalista sobre a batalha legal vivida por ela e Cobain em busca da custódia da própria filha, retirada de seus cuidados após a veiculação de uma matéria da Vanity Fair de 1992 que tratava dos abusos de drogas do casal, incluindo, supostamente, durante o período da gravidez.

Por razões que vão além de todos os méritos mais explícitos do disco, Live Through This já era um clássico instantâneo na época de seu lançamento. Ao contrário da especulação, suas letras jamais poderiam ter sido escritas e interpretadas por ninguém além de Courtney que, anos depois, declarou acreditar que se Kurt, de fato, fosse o autor das composições do disco, elas teriam sido muito melhores. “Eu sempre quis ser melhor do que ele, estava sempre competindo com Kurt e é por isso que me sinto tão ofendida quando ouço esse argumento. Estaria orgulhosa em dizer que ele escreveu algo para o álbum, mas eu nunca o deixaria fazer isso”.

Apesar do orgulho, o guitarrista Eric Erlandson era o único colaborador que Courtney admitia em suas composições e co-assina todas as letras do disco, com exceção a Credit in the Straight World, que não conta com a participação da frontnwoman. Na música, Erlandson traz referências de seu contato com substâncias ilícitas e traça uma divisa entre o submundo das drogas tão perigosamente presentes na cena grunge dos anos 90 e o mundo real. A participação de Eric no Hole se dá, em sua grande maioria, como consequência de sua amizade com Courtney. Como um compositor de sensibilidade ímpar, o guitarrista entendia, ou ao menos se empenhava para compreender o caos, os assédios, o abandono e os abusos vivenciados por Love. Em detalhes pontuais, vocais agressivos e referências mórbidas, aliava-se à vocalista para que ela pudesse contar sua narrativa como uma figura titânica, inabalável e essencialmente feminina.

Tendo seu título inspirado pelo monólogo de Scarlett O’ Hara no filme clássico de 1939, E o Vento Levou…, em que a personagem promete que viveria através de todas as adversidades devastadoras que haviam lhe ocorrido, Live Through This continua sendo tão relevante na atualidade quanto foi em seu lançamento. A comunhão entre a sonoridade puramente analógica, bruta e acústica com as letras sinceras e coléricas tornam-se inflamáveis pelos vocais únicos de Courtney Love, que, tal como O’ Hara, viveu inúmeras tragédias. Do abandono familiar na infância ao intenso escrutínio midiático ao qual foi submetida durante o relacionamento com Kurt Cobain, nada poderia prepará-la para o que viria a seguir, o que torna a escolha do nome do disco sarcástica e morbidamente profética.

Courtney Love resistiu à destituição legal de sua filha com Kurt e a morte de seu marido e sua baixista. Todos esses eventos foram separados por meros meses. Ela continua, contudo, a existir como uma das figuras mais controversas do rock. “O título do disco não é uma previsão do futuro. É mais como ‘viva por tudo o que eu vivi, seus idiotas’. Não era para ser sobre alguém morrendo, mas sobre vivenciar todas as humilhações midiáticas que eu vivenciei. Tente você – porque não é nada divertido”, disse à Spin, em 2014.

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