Mitski: a tristeza e a privacidade na era das redes
Enquanto a proximidade com os fãs é utilizada por alguns artistas para fins estratégicos, é vista por outros como um trabalho nada atrativo e completamente secundário ao trabalho. É o caso da artista nipo-americana Mitski Miyawaki, que desde 2018, sequer se faz presente nos âmbitos virtuais. “Agora que não tenho álbuns completos ou uma turnê para promover, eu preciso sair daqui logo! Obrigada e amo vocês”, escreveu a cantora no Twitter em 2019, poucos meses após o encerramento do ciclo de divulgação de seu quinto álbum de estúdio e também sucesso de crítica, Be the Cowboy.
Nenhum artista recente parece conseguir masterizar, compreender e empatizar com a tristeza tanto quanto Mitski. Desde Lush, seu disco de estréia lançado em 2012, a cantora tornou-se um nome cativante e enigmático no indie rock e, para sua dedicada base de fãs, o fator mais magnético no trabalho de Miyawaki é, sem sombra de dúvidas, sua lírica dilacerante, honesta e excruciantemente dolorosa. O soprano encorpado no tom da artista é a via principal para suas letras que em sua maioria relatam experiências pessoais acerca de relacionamentos vivenciados por ela. Não importa o quão específicos e privados os relatos de Mitski sejam, há a garantia de que irão ressonar com o ouvinte como se tivessem sido escritas para ele.
De baladas calmas em um piano sobre uma relação casual influenciada pelo desalento do eu-lírico, como a intrigante Bag of Bones, à questionamentos contundentes acerca dos efeitos do patriarcado em homens e mulheres, como Real Men e Wife, Mitski preencheu seu primeiro álbum com um experimentalismo ainda embrionário, mais preocupado em expressar o que há a ser dito por ela do que nos aspectos técnicos de produção. No LP que sucede sua estréia, por outro lado, a artista ironiza a temática majoritariamente entristecida do anterior ao anunciar que havia se aposentado da tristeza, apenas para, não tão surpreendentemente, permitir que sua audiência tenha mais vislumbres dentro de suas reflexões ainda tão fúnebres quanto antes.
Retired from Sad, New Career in Business é um disco que por vezes se apresenta como um esforço substancialmente mais elevado em tempo e empolgação, como na faixa de abertura e em Strawberry Blond. Mesmo assim, a maioria das nove faixas originais é revestida dos mesmos componentes lastimosos e comoventes encontrados no primeiro trabalho de Miyawaki. Em Because Dreaming Costs Money, My Dear e Class of 2013, Mitski imprime sua delicada relação com a própria família, trazendo comparações entre a escolha feita ao dedicar-se integralmente à música e a necessidade em receber afeto e consolação por sua mãe, apesar de já não ser mais uma criança.
O crescimento etário da artista, inclusive, é mais um ponto que cativa seus fãs, que, independentemente da idade, terão uma música de Mitski apropriada para o momento que estão passando em suas vidas pessoais. “Eu era tão jovem quando me comportava como se tivesse vinte e cinco anos, e agora vejo que virei uma criança alta”, canta na ponte da brilhante First Love/Late Spring, um destaque de seu terceiro álbum, Bury Me at Makeout Creek. Subvertendo as convenções de que o primeiro amor é sempre uma experiência inocente e memorável, a faixa representa todo o desespero, ansiedade e devoção que a acometeram na ocasião. O disco é um dos preferidos dos fãs e também do público geral, tornando-se um clássico do indie rock nos anos recentes.
Além de vivências conturbadas em relacionamentos, Mitski abraça a ansiedade geracional que também a afeta nesse terceiro álbum. Na indie-grunge Francis Forever, formata um paralelo entre a auto confiança e o isolamento que pode acompanhar o fim de um relacionamento ou decepção romântica, fazendo uma referência no título a seu nome do meio, Francis. O terceiro álbum conta até mesmo com a tentativa de redigir uma canção puramente romântica, mas quando Mitski percebeu que não teria ninguém para dedicar a faixa, produziu a plenamente catártica e animadora I Will, uma promessa de amor para um sujeito inexistente. Last Words of a Shooting Star encerra o disco num acústico melancólico, rememorando uma experiência aterrorizante em um avião para narrar os eventos que antecederam aquele momento que, para a artista, poderia ter sido seu último.
“A felicidade é pra cima e a tristeza pra baixo, mas uma é sempre mais destrutiva que a outra. Quando você percebe que não pode ter uma sem a outra, é possível experimentar longos períodos de contentamento só esperando pela próxima onda”, contou a artista no material de divulgação do trabalho seguinte, Puberty 2, um testamento sonoro da dificuldade em manter-se mentalmente saudável e feliz no dia a dia, o que quer que isso signifique para o ouvinte. Repleto de influências anteriores ao século 21, o álbum catapultou Mitski ao estrelato na cena do indie rock com a crescente popularidade crítica e o sucesso moderado de singles nesse mesmo nicho.
”Essa faixa é inspirada no sentimento de amar muito alguém, mas estar em contextos e lugares tão diferentes que te impossibilitam de fazer qualquer coisa”, contou a artista em entrevista ao NPR em 2016 quando questionada sobre a faixa Your Best American Girl. A crua e punk My Body is Made of Crushing Little Stars é, tanto quanto o título, dramática, num contraste explícito com a sensível, acústica e branda A Burning Hill, cujo a temática lírica gira em torno de uma promessa ou ao menos encorajamento pessoal vindo de um eu-lírico deprimido, que promete contentar-se com pequenas vitórias e realizar tarefas que soam esmagadoramente difíceis na iminência da doença (“I’ll go to work and I’ll go to sleep, and I’ll love the littler things”). Em I Bet on Losing Dogs, Mitski confessa ingressar em relacionamentos que desde o princípio reconhece a falência, com sintetizadores capazes de complementar a desesperança relatada na letra.
”A indústria musical não é um lugar em que pessoas estáveis sobrevivem”, contou Miyawaki numa entrevista de 2018 ao The Outline, completando que “você precisa realmente querer e estar disposto a sacrificar muito do seu bem estar para sobreviver à indústria ou então formatar sua identidade ao redor do que esperam que você seja como artista”. Na ocasião, Mitski havia lançado Be The Cowboy, seu quinto disco, cujo o título toca sarcasticamente no mito dos cowboys presentes no ethos estadunidense. Nobody, a nona faixa do LP, recentemente cresceu em popularidade graças a viralização no TikTok. Para uma artista que sempre rejeitou a idolatria de sua horda implacável de fãs, tornar-se adorada ou ao menos conhecida por mais internautas não significa, necessariamente, algo positivo. “Sou um buraco negro em que as pessoas podem colocar seus sentimentos”, contou para o The Guardian.
Conhecido como o álbum mais popular da cantora, Be The Cowboy reúne canções sobre relacionamentos arruinados, as ligações afetivas com amores passados, a solidão e até onde se vai ou o que se ignora para se sentir aceito. Feita em pouco menos de sete minutos, a sequência de Old Friend, A Pearl e Lonesome Love é capaz de relembrar uma relação distante mas ainda amigável, relatar as dificuldades em entregar-se a um outro alguém e também a impossibilidade obsessiva de esquecer um ex namorado. A curta duração é uma norma no LP, que apesar de ter 14 canções, não passa dos 33 minutos totais.
A relação de Mitski com sua base de fãs é, indiscutivelmente, uma das mais intrigantes na indústria. Em 2016, quando um fã gritou que a amava durante um show, a artista respondeu com um breve e decepcionantemente realista ”você não me conhece”, na contramão da cautela e simpatia com a qual artistas geralmente se referem a seus admiradores. Um meme popular com o rosto da cantora circula de tempos em tempos nas redes sociais sugerindo que ”terapeutas a odeiam” por supostamente produzir músicas ao redor de sua própria melancolia que, para seus fãs, tornou-se sua marca registrada, quase como se Mitski não tivesse o direito de estar ou mostrar-se contente. O top 10 de suas canções mais populares no Spotify e também no Apple Music é ocupado única e exclusivamente por faixas que, tematicamente, parecem estar centradas ao redor de sentimentos de fracasso, tristeza, melancolia ou desespero romântico e afetivo.
Sobrecarregada com a pressão, num último show no Central Park em 2019, anunciou, para o infortúnio de seus fãs, uma aposentadoria indefinida. Apesar de irrevogavelmente apaixonada pela música, ser uma pessoa pública nunca foi uma tarefa simples para a artista que, também ao The Guardian, disse que, no fim do dia, ainda é “uma mulher no público, permitindo-se ser consumida”. Em toda entrevista que concede, Mitski dribla perguntas sobre sua família e até mesmo seus animais de estimação, temendo ser rastreada a partir dessas informações. Foi surpreendente quando, no ano passado, anunciou Working for the Knife como single de Laurel Hell, seu último disco de estúdio lançado pela Dead Oceans.
Reproduzindo os mesmos sintetizadores presentes no trabalho anterior, é o álbum que a artista levou mais tempo para escrever e produzir. Entre seus fãs, a teoria de que a aparente incoerência sonora entre as faixas sugere alguma pressa, como se Mitski tivesse se obrigando a fazer um último lançamento por questões contratuais com sua gravadora. A lírica derrotada de Working for the Knife fornece sustento a suposição, já que, na música, Miyawaki reflete sobre como sua vida parece estar atrelada ao trabalho e eternamente fadada a alguma função operária em prol da indústria, nesse caso chamada de “faca”. *”Esse álbum passou por tantas mudanças”, ela conta a Rolling Stone, *”Foi um disco punk e depois country e, após algum tempo, pensei que precisava dançar. Mesmo que as letras sejam deprimentes, preciso de algo pop para me fazer passar por tudo isso”*, provavelmente se referindo a pandemia do COVID-19.
Definitivamente, Laurel Hell conta com as frações musicais mais animadas e capazes de empolgar o ouvinte desde a estréia de Mitski. Dentre os singles, The Only Heartbreaker, que poderia passar batida como uma música do A-Ha, abusa de sintetizadores e uma roupagem pop oitentista. Love Me More e Stay Soft seguem a mesma proposta, com temáticas líricas mais pronunciadamente distantes que a homogeneidade de seus trabalhos prévios. O piano e a guitarra elétrica de Should’ve Been Me comungam e contrastam com as letras contadas da perspectiva de alguém que foi traído em um relacionamento, mas empatiza com o ato de seu cônjuge e entende a traição, em parte, como sua culpa por ter se colocado como alguém apática e inalcançável na relação.
”Tenho que continuar trabalhando mesmo que isso me fira, porque eu amo trabalhar. É quem eu sou”, revela para a Rolling Stone quando questionada sobre os planos anteriores de se aposentar. Em um post recente no Twitter após os primeiros shows de sua turnê de divulgação para o novo álbum, Mitski despertou a fúria de parte da internet ao solicitar que seus fãs tentassem aproveitar seus shows ao invés de acompanhá-lo pela tela do celular, gravando todas as músicas. Como tudo nas redes sociais, o argumento foi distorcido por parte de seu público, que defendeu a importância de documentar os shows já que alguns deles experimentam dissociação ou depressão como quadro clínico, dependendo da segurança de seus celulares.
Seria arriscado dizer que Mitski permanecerá ativa na indústria mesmo diante de uma relação tão conturbada com a fama e seu público, mas é seguro afirmar que, pelo menos por enquanto, seus ouvintes podem desfrutar da ressonância devastadora em suas letras e acompanhar sua presença tímida e moderada online, já que suas redes sociais são gerenciadas pela gravadora. Em novembro desse ano, a artista virá ao Brasil como parte da line-up do festival Primavera Sound, em São Paulo, e fãs locais já organizam-se para seguir o pedido da artista e manter o uso dos celulares no mínimo, mesmo que apenas durante seu show.