The Man Comes Around: O Dia Que Johnny Cash Morreu | Moodgate
Um novo sentimento para a música
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The Man Comes Around: O Dia Que Johnny Cash Morreu

Eu me lembro como se fosse hoje.
Estava meio sonolento da viagem, chovia muito na estrada e lá fora, pela janela, estava perfeito para um fim de tarde de preguiça, mas eu estava dentro de um carro com meu pai e o velho Santana flutuava pela estrada. A gente queria chegar na cidade antes da noite cair para poder comer uma costela que estava guardada. Por algum motivo, meu pai nunca comia de noite e como sempre, Johnny Cash tocava no CD do rádio.

Eu fui abençoado com a cultura musical dentro de casa, lá se ouvia de tudo, menos rock’n’roll. Meu pai dizia que esse estilo musical só existia por conta de caras muito mais rock’n’roll do que existem hoje em dia. Para ele, Nirvana era só barulho de fundo, mas dizia que “Smells like Teen Spirits” era um hino. O último álbum que Johnny Cash lançou, em vida, se chamava American IV: The Man Comes Around. Ainda seria lançado mais dois álbuns, sendo o quinto dois anos após seu falecimento nessa linha numérica. Nenhum álbum da American Recordings que Johnny Cash produziu junto com Rick Rubin era ruim, mas o IV era o mais triste, o mais melancólico, o mais pesado.

Abrindo com “The Man Comes Around”, Johnny com sua voz rouca e grave, inicia um som de rádio com uma passagem gospel falando sobre o dia do julgamento e como Ele, O Homem, irá cobrar por tudo, por todos os pecados, por tudo que nós fizemos. A linha riff-raff das notas e a velocidade que ele toca as cordas no violão preveem um ar de iminência, sem escapatória. Ele sempre cobra, seja quem for.

Minha cabeça chacoalhava para frente e para trás me mantendo meio acordado, meio dormindo. Até que numa boa reta naquela estrada com uma chuva torrencial que não parecia cessar, eu finalmente caí no sono. O celular do meu pai tocou, ele atendeu. Sem falar nada, desligou o telefone. Jogou o carro para o acostamento e foi parando devagar. Tirando o movimento moto-contínuo eu acabei acordando e olhei para a cara do meu pai. Percebi que a gente estava parado e o motor do carro desligado. A cara dele não era das melhores e os olhos dele se embotaram de lágrimas.

A segunda canção do álbum é “Hurt”. Vocês entenderam para onde esse álbum está indo, né? Direto pro inferno, direto para o seu coração. “Hurt” é uma canção original do Trent Reznor para Nine Inch Nails que fala sobre o vício de drogas. Mas na voz de Johnny Cash, era muito mais que isso. Era sobre um homem quebrado que sente falta da mulher que ama. As primeiras canções dessa obra-prima falam sobre a Morte, religiosamente e romanticamente. O grande artista não é aquele que faz um cover e se consagra, é aquele que dá um novo sentido. Cash é um dos maiores ídolos do rock’n’roll por ser autêntico.

Como “Hurt”, há outras faixas cover no álbum que ressoam como se fossem frescas e novas, mas elas não batem tanto quanto essa canção. E para dois caras dentro de um carro, num dia chuvoso, a música dói.

Vocês precisam entender uma coisa, meu pai nunca foi um homem para expressar seus sentimentos. Ele era muito feliz? sim. Vivia contando piadas e era uma pessoa animada, mas meu pai nunca se abriu para ninguém. Para mim, ele era um estranho que morava junto e que um dia apareceu lá em casa e minha mãe deu abrigo. Era essa a impressão.

Eu não tinha conhecimento de nada da vida do meu pai. Nem dos amigos, nem do passado, nunca houve um papo de filme que mais gosta, como eu deveria beber um uísque ou como você deve tratar uma mulher, apesar dele mostrar isso muito bem. Era só ficar atento. Nas palavras dele: “homem se faz, não tem muito o que ensinar”. E ali estava um cara de concreto, frio, calmo como uma bomba explodindo sentimento. Mesmo contido, as lágrimas começaram a rolar pelo rosto dele. Na mesma hora, me deu um pânico.

“Give My Love to Rose”, “Bridge Over Troubled Water” e “I Hung My Head” seguem na mesma vibe que foi estabelecida desde o começo, mas é com a faixa 6 que as coisas ficam… embargadas. Quando o vocal rouco e pausado de “First Time Ever I Saw Your Face” é cantado, fica impossível não se emocionar. Alguns meses antes, Johnny perdia June, sua mulher e companheira por quase toda a vida. Ele sempre disse que ela era um anjo que veio para salvar sua vida, e agora estava sozinho e por si.

“First Time…” faz você pensar no amor e na possibilidade de não ter alguém mais perto de você, novamente desvirtuando o sentido original de como essa canção foi escrita por Roberta Flack. American IV é um álbum quase todo dedicado ao cancioneiro americano, mas especificamente o cancioneiro escondido do amor e da solidão. Seguidos por “Personal Jesus” e “In My Life”, Johnny Cash suaviza a dor da faixa 6, mas ainda ressoa que é para você ficar atento. Como um boxeador bem treinado, ele ainda não parou.

O que aconteceu com a mamãe? Foi o que perguntei umas duas vezes. O que aconteceu com a mãe?! Silêncio e ele olhando pro nada. Lá fora a chuva cai sem parar e o vidro embaçado aqui dentro do carro: uma tempestade. Ele chorava sem medo de esconder o rosto. Como é estranho ver um rosto calejado de rugas e pintas, marcas do tempo manchadas por um rio de gotas num caminho certeiro e salgado. Como dói ver um senhor com uma dor.

O telefone tocou de novo. “Atende, é a sua mãe.” Disse com dificuldade. Graças a Deus, era a mãe.
“Oi, mãe. O que está acontecendo?”. Ela, séria e preocupada. “Seu pai está bem?”. Eu olhei para ele, seu rosto abaixado olhando para as mãos no volante. “Tá sim”. Ela sabia que eu estava mentindo, mas mamãe tomou coragem. “Meu filho, o Johnny Cash morreu…”

Nas próximas faixas, ele segue um caminho certeiro com clássicos do country. De “Sam Hall” , “Danny Boy” e “Desperado”, ele entrega a alma caipira americana, mas sem grandes virtuosidades. Em “I’m So Lonesome I Could Cry” do grande Hank Williams, ele se fere mais um pouco da própria dor. Daqui para o final, “Tear-stained Letter” é a mais animada do álbum, seguida por “Streets of Laredo”, mas é com a música de encerramento que Johnny Cash te lembra que a tristeza aqui é permanente, mas pode ser uma escapatória. Se reconciliando com “We’ll Meet Again”, Cash faz pazes com a solidão, se conforma, e ao olhar para todo o álbum, a gente sente um ar de tristeza e peso. Ao fim, a história contada da vida de um homem que amou e viveu do jeito que sempre quis fica marcada. É o que está construído magistralmente por Rick Rubin e Johnny Cash. Mas, dentro daquele carro, a gente não tinha noção disso e estávamos exatamente na faixa 6.

“…filho?”
“Eu preciso desligar o telefone, mãe.”
Desviei os olhos do meu pai chorando dentro daquele carro velho. Eu olhei para a chuva lá fora e algo me veio dentro do coração, como uma pontada. Eu pensei na mulher dele, me retorci e cerrei os olhos. Quando abri, estava olhando para as minhas mãos, como meu pai. Nós ficamos ali, compartilhando.
Johnny Cash não é um artista, um cantor, um estilo. Johnny Cash é uma força humana. Johnny Cash é o que todo homem entende: coisas simples do campo como honra, tradição, respeito e saber que a vida é dura e que nada bate mais forte que ela. Ele morrendo é como se o mundo ficasse menos nobre.
“Por que ele morreu?”. Indaguei meu velho que puxou forças lá de dentro para responder: “Ele morreu porque ele ama demais.”
Silêncio total. Ele engatou a marcha, ligou os faróis e acelerou.

Naquela noite, eu entrei no meu quarto e chorei a noite toda. De manhã, meu pai estava com uma cara inchada indo para o trabalho. Parecia papelão estufado pela lama. Minha mãe olhava para nós como se a gente fosse cair a qualquer instante.
Eu não sei quanto tempo a gente ficou parado naquele acostamento, mas tem dias que parece que ainda estamos ali.

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