O nome dela é Gal, sempre Gal: 77 anos da ‘mãe de todas as vozes’
Fatal, plural, tropical, índia, legal, profana, estratosférica. Muitos são os adjetivos-álbuns que tentam dar conta de fazer caber Gal Costa, uma das maiores intérpretes da música brasileira, a “mãe de todas as vozes”, que, hoje, completa 77 anos. Maria da Graça Costa Penna Burgos, a Gracinha, a Gau (com u, mesmo, como era chamada pelos amigos mais íntimos) da Barra Avenida, em Salvador, Bahia, virou Gal Costa ali na reta final da década de 60, quando, empresariada por Guilherme Araújo, precisava de um nome artístico. “Maria da Graça”, como era apresentada nos cartazes e programas de shows no Teatro Vila Velha, em Salvador, apesar de “belo e nobre”, segundo Guilherme, “sugeria uma antiga intérprete de fados portugueses”. Ele escolheu, portanto, o apelido “Gau”, e sugeriu trocar o “U” (para ele, “pesado e pouco feminino”) pelo “L”. O sobrenome escolhido para dar força ao nome, como sabemos, foi o “Costa”. Caetano, no entanto, grande amigo e parceiro artístico de Gal, ia contra essa ideia do empresário por conta do militar que comandava o país à época, o general Costa e Silva, cuja abreviatura do nome também tinha o “Gal.” na frente (“Gal.”, de “General”). Mas Gal Costa, a cantora, com “L” mesmo, no final das contas, era a antítese do general homônimo e de tudo o que ele representava. “Meu nome é Gal” – ela dizia, em 1969, cantando, se apresentando e marcando seu lugar na história.
A devoção por João Gilberto e seu canto moderno, tímido e contido – inspiração que deu para a intérprete, à época, o apelido de “João Gilberto de saias”, foi, digamos, o “ponto de partida” artístico de sua carreira e a principal intercessão entre ela e Caetano, com quem desenvolveu uma relação um tanto quanto simbiótica. O primeiro disco deles, inclusive, foi em dupla (a Philips acreditava ser muito arriscado apostar em um disco de estreia para cada um dos artistas). “Domingo” (1967), o abre-alas da discografia de ambos os amigos, é ao mesmo tempo uma ode à bossa nova joão gilbertiana e um prenúncio da avalanche tropicalista que já estava sendo gestada. (Mais tarde, ainda naquele ano de 1967, no III Festival de Música Popular Brasileira, Caetano se juntaria com os Beat Boys para apresentar “Alegria, Alegria” e, Gil, junto com Os Mutantes, “Domingo no Parque” – era o tropicalismo já começando a dar as caras). Ao longo da década de 70, em maior ou menor grau, Caetano seguia sempre em ritmo de confluência com a carreira da amiga – em 1974, inclusive, produziu e dirigiu o “Cantar”, na época com uma recepção controversa e, hoje, considerado um dos maiores sucessos da discografia de Gal. Em 1979, no entanto, houve uma mudança significativa nessa relação. Com o show-disco “Tropical”, Gal foi alçada à figura de diva, de estrela pop nacional. O trabalho quebrava recordes de vendas e – junto com o “Álibi” (1978), de Bethânia – era uma verdadeira “unanimidade” no Brasil. Caetano, no entanto, contrariando a tudo e a todos, foi até a amiga e, chorando, disse que não havia gostado do seu show. Segundo ele, Gal estava “muito armada” e o show era “careta”. “Só agora, mais de 20 anos depois, entendo a lágrima dele no camarim. Acho que naquela hora ele percebeu que nascia uma nova Gal. Que ele perdia sua criatura. Que eu poderia partir para sempre sendo eu mesma. Como um pai que via sua filha sair de casa, livre e independente”, disse Gal.
Por muito tempo, Gal foi considerada a “musa” do tropicalismo. (De tempos em tempos mulheres são consideradas “musas” dos seus próprios movimentos). Acontece que “musa” pressupõe certa passividade, certo “descompromisso”, características que nunca funcionaram para ela. Naquela virada de década (final de 60 e início de 70), Gal se metaforseava e esticava a corda do vanguardismo. Foi ela que pediu para que Gil fizesse um arranjo mais agressivo e com uma “pegada” diferente em “Divino Maravilhoso” – a barra estava ficando cada vez mais pesada e ela precisava gritar bem alto (“É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”). Também foi Gal quem segurou as pontas da resistência contracultural tropicalista quando seus amigos Caetano e Gil estavam em Londres, exilados. “Eu sou amor da cabeça aos pés” – ela gritava, no seu “FA-TAL”, show antológico considerado o auge do “desbunde”, esse primo-irmão da contracultura que transformava o corpo em principal agente político. Em livro onde fala sobre “as personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar”, Renato Contente defende o argumento de que ambas as artistas, ao selecionarem seus repertórios, escolherem o modo de interpretar as canções e seus estilos (de roupas e comportamentos) se transformavam também – e principalmente – em autoras de suas próprias obras. Ou seja, Gal não era a musa, mas autora de sua própria obra. Caetano disse: “Gal é figura de grande centralidade no Tropicalismo. É como se Gil e eu, assim como Bethânia à sua maneira, fôssemos o pensamento sobre a coisa – e Gal fosse a coisa em si”. Ou seja dois: Gal não era a musa, mas o Tropicalismo. Palavras do próprio Caetano.
Vamos pular alguns anos. Esse texto não é uma retrospectiva. Falei do passado para entendermos o presente, e não para ficarmos olhando para lá. Em 2011, uma grande virada na vida-carreira de Gal: o seu “Recanto” – seu e de Caetano que, depois de quase 40 anos, voltava a produzir e dirigir um trabalho da amiga – o último tinha sido o “Cantar”, em 1974, já citado anteriormente. Para Dapieve, jornalista e crítico musical, o “Recanto” surgiu de um impulso a fim de mostrar que eles [Caetano e Gal – ambos, na época, com quase 70 anos] estavam vivos e seguiam relevantes. A partir dali a intérprete retomou seu tônus voltado para o “hoje” – renovou seu público e seu repertório, começou a trabalhar com músicos e compositores mais novos e resgatou a faísca do experimentalismo – “Ainda me sinto uma tropicalista”, declarou Gal, recentemente.
É esse o norte que segue, até hoje, guiando a artista: o olhar para o hoje, para o presente, para a vontade de seguir sempre ativa e íntegra. Quando fez 75 anos, em 2020, Gal disse em entrevista para a Vogue Brasil que faz planos para o futuro e ainda tem vontade de realizar muitas coisas – mesmo com as pessoas dizendo que uma pessoa com a sua idade não pode fazer isso. Também em 2020, lançou um álbum que coroa essa conexão com as novas gerações da música brasileira (e, em menor grau, da música mundial também, com Jorge Drexler e António Zambujo), com regravações de grandes sucessos da sua carreira em duetos com Zeca Veloso, Seu Jorge, Tim Bernardes, Silva, Rubel, Rodrigo Amarante, Zé Ibarra e Criolo. Rubel, Tim Bernardes e Zé Ibarra, inclusive, já fizeram participações em shows da artista. Há alguns anos, para o álbum “A Pele do Futuro” (2018), Gal gravou em dueto com Marília Mendonça uma música composta pela própria jovem, a linda e chiclete “Cuidando de Longe”, que teve até clipe com registros do encontro entre as duas. Recentemente, foi anunciado a gravação de outro feat, dessa vez com Marina Sena – diva pop do interior de Minas em ascensão meteórica que sempre faz questão de declarar sua profunda devoção por Gal e que, coincidentemente (ou não?), também faz aniversário hoje. As duas cantaram “Para Lennon e McCartney”, do Bituca, e a música ainda não foi lançada.
Sobre a música “Dê um Rolê”, inclusive, já citada anteriormente com o verso “Eu sou amor da cabeça aos pés”, Gal afirmou, no ano passado, se tratar de uma potente música de protesto, pois o amor era tudo o que a ditadura militar não era. Esses paralelos com o passado se tornam muito ricos na medida em que atualizam antigas questões e dão ao presente novos sentidos. Gal sabe disso. Em sua turnê anterior, “A Pele do Futuro”, ela entrava no palco cantando essa música.
Em novembro próximo, quando se apresenta no festival Primavera Sound, em SP, para recriar o show “FA-TAL: Gal a todo vapor”, a música volta para o seu setlist de origem. Cinquenta anos depois, os versos de “Dê um Rolê” continuam atuais e vivos na voz de Gal. Outra música que segue (infelizmente) em constante atualização é um sucesso de Cazuza eternizado na discografia da intérprete. Parafraseando Adriano Silva, que falava sobre Mick Jagger em turnê atualmente, dançando e cantando, digo que hoje, com quase oitenta anos, ao cantar “Brasil” no final de todos os seus shows, Gal “reinventa muito mais coisas, revoluciona muito mais conceitos”, do que quando cantou com os peitos de fora na década de noventa. “Essa próxima música que eu vou cantar, eu gravei há muitos anos, e eu queria muito tirar ela do meu repertório, mas o Brasil não deixa!”, dizia Gal antes de cantá-la. No show do último dia 17, em SP, em razão da proximidade das eleições, ela mudou o discurso. Gal convidou as pessoas a votarem “com sabedoria e com inteligência, sem ódio e com amor”. Depois, a catarse coletiva com os versos: “Não me convidaram/ Pra essa festa pobre/ Que os homens armaram/ Pra me convencer/ A pagar sem ver/ Toda essa droga/ Que já vem malhada/ Antes de eu nascer”. Todos cantando junto, a plenos pulmões. Fatal, plural, tropical, índia, legal, profana, estratosférica. Hoje, com 77 anos, Gal é todas essas Gals juntas.