A sensibilidade brilhante de Fiona Apple | Moodgate
Um novo sentimento para a música
2527
post-template-default,single,single-post,postid-2527,single-format-standard,bridge-core-3.0.1,qode-news-3.0.2,qode-page-transition-enabled,ajax_fade,page_not_loaded,,qode-title-hidden,qode_grid_1400,vss_responsive_adv,vss_width_768,footer_responsive_adv,qode-content-sidebar-responsive,qode-overridden-elementors-fonts,qode-theme-ver-28.7,qode-theme-bridge,qode_header_in_grid,wpb-js-composer js-comp-ver-7.9,vc_responsive,elementor-default,elementor-kit-7

A sensibilidade brilhante de Fiona Apple

Em setembro de 1997, aos dezenove anos, Fiona Apple subiu ao palco do VMA para aceitar a estatueta de Melhor Novo Artista em um Vídeo. Numa referência a poeta e ativista Maya Angelou, Fiona antecipa que usaria aquela oportunidade não para agradecer seus colaboradores, mas para um fim mais grandioso. “Esse mundo é uma merda”, declarou, olhando fixamente para a câmera enquanto aplausos ecoavam pelo auditório. ”Vocês não deveriam moldar suas vidas em cima do que nós achamos que é legal, o que vestimos ou o que dizemos”, continuou Fiona, ciente de que, nos bastidores, havia proporcionado uma imensa dor de cabeça para executivos e produtores da MTV. À audiência, Apple direcionava uma mensagem simples que, na atualidade, já foi reciclada inúmeras vezes por refrões de hits pop no rádio: ”seja você mesmo”. Nove anos mais tarde, afinal, P!nk venceria a categoria de Melhor Vídeo Pop por Stupid Girls, uma música dedicada a satirizar o estilo de vida manufaturado de celebridades. Mesmo assim, no dia seguinte ao VMA de 1997, Fiona se tornou o alvo principal de todos os tablóides.

Desde o lançamento de Tidal, seu álbum de estreia no ano anterior, Apple colecionava manchetes e controvérsias das mais injustas, numa tentativa massiva da mídia de tornar sua honestidade brutal um defeito a ser contido. Enquanto a comediante Jeanine Garofalo dedicava todo um monólogo a satirizar o discurso de Fiona no VMA e um possível transtorno alimentar, a MadTV ridicularizava o videoclipe de Criminal, single de seu primeiro álbum, e se referia a artista como uma “chave de cadeia seminua”. Simultaneamente, a versão original do clipe era amplamente reprovada por, supostamente, promover a anorexia e a exposição indecente. Para a NYRock, Fiona era uma ”diva sofrendo pela própria arte” e, mesmo dez anos mais tarde, numa crítica do álbum Extraordinary Machine, uma redatora do The New Yorker criticou a cantora por ter exposto e discutido publicamente um assédio experimentado durante sua adolescência e intitulou sua postura no VMA de 1997 como a de alguém ”insultado, e não gratificada”.

Com quatro milhões de cópias vendidas, o sucesso meteórico do primeiro disco de Fiona trouxe consigo os primeiros sintomas de que a transparência com a qual a artista escolhia abordar seus dilemas, traumas e relações em suas músicas seria um problema. Em Sullen Girl, a segunda faixa de Tidal, Apple desvenda sua natureza supostamente apática, atribuindo sua indiferença a um episódio traumático de seu passado, relacionando-o também a sua depressão. ”Será que é por isso que me chamam de garota emburrada?”, canta, logo após o primeiro refrão da música. ”Eles não sabem que eu costumava velejar o mar profundo e tranquilo, mas ele lavou meu litoral e roubou minha pérola, me deixando uma concha vazia”, continua. No mesmo disco, Fiona entrega também seu single de maior sucesso, escrito em quarenta e cinco minutos durante uma pausa para o almoço depois que os executivos de sua gravadora solicitaram uma canção mais comercial. Criminal tornou-se o carro chefe do álbum, dividindo espaço com composições maduras, sensíveis e intimamente verdadeiras, ao ponto de acionar discussões que visavam descredibilizar a autoria de Apple em seu trabalho.

A fusão de jazz e r&b de Tidal foi continuada com maior maturação no When The Pawn…, três anos depois, cujo título completo rendeu, à época, o recorde de maior nome de álbum. Em disparidade ao primeiro álbum, o novo disco teve como centro temas generalizados como frustrações amorosas e outras experiências românticas que, apesar das letras duramente específicas, ressonam com vivências universais a todo ouvinte. ”É difícil o suficiente tentar ser civilizada comigo mesma”, revela Fiona em meio a percussão magnética e agitada de To Your Love, tentando alertar um possível interesse amoroso para afastar-se. O revanchismo e a tomada de poder diante de relações abusivas são tópicos durante as contraposições instrumentais de Limp, embasada pelo piano e bateria que se expressam como constantes durante o disco, e Get Gone. No entanto, é Paper Bag, o single principal do *When The Pawn… que sintetiza perfeitamente a diversidade de temáticas líricas do álbum. Confrontando a controvérsia dos distúrbios alimentares levantada pela mídia durante a promoção do álbum anterior, Fiona referência a fome não como a escassez de alimentos, mas como a ausência de amor (”a fome dói, mas morrer dela funciona quando custa demais para amar”).

Dentre outros destaques, a irreverência expressa pelo autoconhecimento na letra de A Mistake chama a atenção quando pareada com a guitarra elétrica que surge no fim dos refrões. ”Eu sempre faço o que acho que deveria fazer, quase sempre faço o bem para todo mundo”, argumenta Fiona, logo antes de alegar que, mesmo assim, sente-se atraída pelo erro. Mesmo quando formula uma estrutura perfeita para acomodar uma canção de amor tradicional, Apple emprega algum ceticismo e melancolia em I Know, a última música, escrita do ponto de vista de uma mulher em um relacionamento com um parceiro já comprometido. Mais tarde, a faixa ganhou uma versão na voz de Elvis Costello, depois que Fiona entregou seu próprio cover de I Want You.

Não por acaso, a cada novo disco, Fiona arrecada ainda mais admiradores dentro e fora da indústria da música. No início de 2002, Johnny Cash alugou a célebre mansão Paramour, em Los Angeles, para colaborar com a artista em novas faixas. A dupla passou seis meses na propriedade num lento processo criativo, descrito por Cash como ”esperar até que Fiona escrevesse mais músicas”. Eventualmente, a Sony, selo de distribuição da compositora, exigiu novas canções para a produção de um novo álbum, que só viria a ser publicado em 2005, após inúmeros conflitos com a gravadora. Em resposta aos constantes atrasos na disponibilização do novo disco — que chegou a ser descartado por inteiro quando a agência mostrou-se insatisfeita com o material —, os fãs da cantora enviaram centenas de maçãs de espuma para a sede da Sony como uma das etapas da campanha FreeFiona. Ainda assim, as sessões com Cash produziram umas versões conjuntas incríveis de Bridge Over Troubled Water e Father and Son.

Nos anos seguintes, Fiona viria a solidificar-se como uma das artistas mais criticamente aclamadas de sua geração com o lançamento de seu terceiro disco, o abrasivo, emocionante e não raramente brutal The Idler Wheel…* Every Single Night*, a faixa de abertura, define o tom do álbum ao oferecer contraposições vocais entre os versos, mais melodiosos e contidos, e o refrão explosivo. A canção é uma ode às batalhas mentais diárias travadas por Apple, aqui expressas entre o dilema de não querer pensar demais, mas o intenso desejo de sentir todas as emoções possíveis. Tamanho contraste surge em diversos outros momentos do projeto, como na intensa Daredevil, na qual a artista confessa sua atração pelos extremos.

Por todo o disco, Fiona assume a forma de uma faca quente, um recipiente de manteiga e até mesmo uma tulipa presa em um copo, como no caso da sensível e conformista Valentine. No tocante aos adjetivos utilizados para caracterizar seus parceiros, em Werewolf, a compositora abusa de metáforas das mais diversas a fim de descrever a falha de um relacionamento. ”Eu poderia te relacionar a um lobisomem pelo jeito que você me deixou para morrer, mas eu admito que providenciei a lua cheia”, assume Fiona, num tom derrotista sobreposto ao piano tão indissociável de seus trabalhos. Na música, conclui que a única forma dos dois amantes auxiliarem um ao outro é continuarem evitando-se. Hot Knife, a penúltima faixa, anuncia a excitação de Apple diante de um novo parceiro numa percussão frenética que alterna entre os tambores persistentes e o piano empolgante.

Em 2020, Fiona lançou Fetch the Bolt Cutters, vencedor do Grammy de Melhor Álbum Alternativo, enquanto Shameika, um dos singles do disco, recebeu a estatueta como a Melhor Música de Rock. Já nos primeiros dias de sua disponibilização, o álbum tornou-se um clássico instantâneo da música alternativa, surpreendendo pela produção caseira que mescla amostras de sons com residência na própria casa da artista. Mesmo na primeira faixa, latidos de cachorro e o tilintar de instrumentos de cozinha ecoam discretos em seções distintas. Indiscutivelmente, Fetch the Bolt Cutters foi o projeto mais elogiado do ano pela crítica especializada, eleito o melhor disco do ano pela Pitchfork e Vulture.

Para qualquer novo ouvinte, seguir a discografia de Fiona a partir do Tidal, o primeiro disco, até progressivamente alcançar o Fetch The Bolt Cutters é a melhor forma de constatar a evolução excepcional da artista. Ao fim da jornada, tornar-se um admirador deixa de ser uma remota possibilidade: o talento nato de Apple para transformar seus traumas, dores e relacionamentos em composições é o suficiente para hipnotizar sua audiência.

About the Author /

joaomothe@moodgate.com.br

Post a Comment