Boygenius – the record
Muito mudou desde o primeiro EP do trio Boygenius, em 2018. De algum modo, o humor ácido do perfil do Twitter de Phoebe Bridgers sempre se encarregou de cobrir todos os acontecimentos mais relevantes de lá pra cá, seja o lançamento surpresa de um álbum de Taylor Swift ou a destituição dos direitos legais de aborto nos Estados Unidos. Nesse meio tempo, além de Bridgers, Lucy Dacus e Julien Baker, dois dos três terços da banda, também tiveram os anos mais importantes de suas carreiras até então. Com discos criticamente aclamados e turnês mundiais bem sucedidas, a possibilidade de uma reunião sempre soou distante, embora estranhamente próxima, dadas as frequentes colaborações entre as artistas em seus discos individuais. Numa gravação anexa ao fim da faixa Going Going Gone, presente no Home Video, último álbum de Dacus, as risadas de Bridgers e Baker ecoam ao fundo, sucedidas por uma nota de Lucy que, enfaticamente, declara que deve qualquer coisa que as outras duas pedirem para o resto de sua vida. Mesmo assim, quando a justaposição vocal hipnotizante e assombrosa do trio introduz os primeiros segundos do the record, é difícil não se deslumbrar com a harmonia extasiante, num efeito similar ao do projeto autointitulado de 2018. “Converse comigo até que sua história deixe de ser um mistério para mim”, entoam, numa declaração que, tão sutil quanto poderosa, cria o prelúdio do álbum.
A tríade rejeita a suposição de que o gênero ou a sexualidade deva anteceder o trabalho coletivo e individual das integrantes e, embora as baladas profundamente emotivas pareçam recorrer à intensidade que só se é testemunhada em clichês românticos sáficos, resistem a tendência de tornar a homoafetividade o token central de seus projetos. Unido pela química caótica, o senso de humor catastrófico e uma invejável dinâmica de amizade, Boygenius escreve canções que emolduram perfeitamente as proficiências particulares de cada componente, seja na forma das letras dolorosamente literais e realistas de Lucy Dacus, na poesia melancólica e imagética de Phoebe Bridgers ou nos apelos sentimentais vibrantes de Julien Baker. Mais do que pela música, a banda cria ressonâncias poderosas que representam a liberdade coletiva comum às gerações queer mais jovens, sem precisar de muito além da sensibilidade, talento e coturnos Dr. Martens uniformizados.
No the record, a tríade abandona a desolação abafada do primeiro álbum para investigar o arrependimento, a paixão e a amizade entre elas, fenômeno que parece condicional à própria existência. Embora sejam universais a todas as audiências, as temáticas abordadas nas composições do Boygenius ganham força singular quando verbalizadas por vozes que, com imediata credibilidade, parecem carregar novas semânticas específicas para pessoas LGBT. No ano passado, durante a apresentação de Phoebe na primeira edição do Primavera Sound São Paulo, não era raro avistar casais homoafetivos de mãos dadas, abraçados ou simplesmente sincronizando berros guturais com a cantora ao fim de I Know the End.
Por isso, soa legítimo quando Bridgers ilumina suas imperfeições e lamenta o fim de um relacionamento na estonteante Emily, I’m Sorry. Para uma artista que rejeita exposições midiáticas e raramente tece declarações acerca de seus relacionamentos pessoais — vide o status nebuloso de sua relação com o ator Paul Mescal —, Phoebe não teme a especificidade em suas composições líricas e, na faixa, referencia uma antiga namorada, a dubladora Emily Bannon, pelo primeiro nome. “Eu tenho vinte e sete anos e não sei quem eu sou, mas sei o que eu quero”, canta, numa súplica característica de alguém que estaria disposto a qualquer coisa para minimizar a solidão. Como o máximo dilema que caracteriza a faixa dos vinte anos, o autoconhecimento assume posição central no disco e, em True Blue, Dacus admite certo conforto na vulnerabilidade. “É bom ser conhecida tão bem”, assume, antes de dar forma ao que, no léxico do Boygenius, toma os moldes da mais profunda declaração de amor: “não posso me esconder de você como me escondo de mim”.
Night Shift, o último clipe lançado por Dacus, mostra um encontro romântico da cantora numa festa com a atriz Jasmin Savoy e, numa das faixas do Home Video, disco de 2018, Lucy remonta a memória de uma amizade de infância profundamente abalada pela lesbofobia externa. Bem como Dacus, Julien Baker também foi criada em um ambiente cristão e, em entrevista de 2021 à Slate, lamentou sua demora para acomodar-se no que chamou de “alegria queer”. Curiosamente, são raros os momentos no novo projeto em que a felicidade é devidamente referenciada, com exceção às canções que servem como odes a amizade do trio. Leonard Cohen, por exemplo, aproxima-se de uma crônica acerca do vínculo inquebrável das três ao relatar uma viagem de carro em que Bridgers havia assumido o volante. “Se vocês me amam, vão ouvir essa música”, disse. A imersão de Lucy e Julien nos acordes de The Trapeze Singer, do Iron & Wine, foi tanta que as inibiu de advertir a motorista de que ela havia entrado no caminho errado.
Satanist testa os limites de uma amizade ao convidar um interlocutor a juntar-se eu lirico em diferentes filosofias e religiões. Do niilismo à anarquia, a faixa faz alusões ao niilismo otimista de Lucy e, primariamente escrita por Baker, é uma das canções que, ao lado do single Not Strong Enough, carrega instrumentação característica do indie rock. Num recente podcast da Pitchfork, a banda não conteve as risadas ao, sarcasticamente, autor rotular sua sonoridade como “indie rock de garotas tristes”, uma etiqueta estereotipada que parece ter saído diretamente do Tumblr de uma adolescente confusa no início da década passada. Mesmo assim, há de se reconhecer a melancolia que domina grande parte das composições do disco, por vezes acompanhada de um otimismo genérico que mascara um pessimismo intensamente familiar. O tom romanticamente descrente de We’re In Love evoca uma asfixia sentimental que, a partir desse ponto do the record, não se extingue nem mesmo quando a última faixa termina. “Você poderia absolutamente quebrar o meu coração, é como eu sei que estamos apaixonadas”, revela Dacus, nos acordes acústicos mais discretos do disco. À altura em que a canção de 2014 de Taylor Swift, You’re In Love, é referenciada no fim da faixa, a desolação já é palpável.
O arranjo mais empolgante de Anti-Curse disfarça a lírica mórbida e existencialmente reflexiva que remonta uma tentativa de Baker em examinar sua vida durante uma experiência de quase afogamento na praia de Malibu. A potência retrospectiva da composição e a instrumentação excepcionalmente reminiscente dos trabalhos de Julien tornam a canção um dos momentos mais memoráveis do novo álbum, muito embora o tormento de A Letter to an Old Poet, que encerra o disco, institua um transe que parece durar uma eternidade. Num diálogo inicialmente sutil com Me & My Dog, destaque do EP de 2018 do Boygenius, a faixa é um suplício agonizante com origem num romance desgastado, mas entorpecido o suficiente para, de princípio, minar a autonomia do eu lirico. “Eu te amo, mas não sei o porquê, eu só amo”, canta Bridgers, sobre harmonizações das duas outras integrantes da banda. A autorrealização do refrão que se sucede é quase tão destruidora quanto libertadora: “Você não é especial, você é mau” são as primeiras palavras de uma confissão análoga a um desesperadamente longo suspiro de alívio.
O refrão de A Letter to an Old Poet interpola a já emotiva melodia de Me & My Dog, mas não sem antes contestar a condenação presente na letra da canção de 2018 com uma confissão engasgada e, dessa vez, independente. “Você me faz me sentir como um igual, mas eu sou melhor do que você e você deveria saber disso por agora” é uma das passagens mais poderosas do álbum quando colocada em perspectiva com a trajetória lírica de submissão romântica e vocação melancólica que circunscreve parte do the record. Como se não fosse o suficiente, uma centelha de esperança é expressa em meio à tempestade quando Bridgers vocaliza, numa irônica contradição, a frase mais incondicionalmente triste não só do álbum, mas também de seus projetos individuais: “Eu quero ser feliz, estou pronta” é um voto amadurecido em nome da prosperidade pessoal, tão ofuscada pela sensação torturante de que, quando se lida com a melancolia, parece que aquele sentimento irá durar para sempre. Se em Me & My Dog o trio almeja escapar para o espaço apenas com um cachorro para fugir da angústia terrena, o clímax de A Letter to and Old Poet é promissor, mas incerto. “Eu não consigo sentir (a felicidade) ainda, mas estou esperando”.
Lançado em conjunto a um curta dirigido pela atriz Kristen Stewart, the record se consagra como um clássico imediato do gênero, não especificamente pela inventividade de suas produções ou o cruo sentimentalismo das faixas, mas por reunir os talentos individuais de três das mais potentes compositoras da contemporaneidade. As composições do Boygenius atravessam percepções de gênero estereotipadas e, mesmo quando podem soar excessivamente melodramáticas, proporcionam certo grau de projeção e inigualável afinidade com o ouvinte. Por mais que o futuro reserve louros ainda mais empolgantes para as carreiras das integrantes, há de se confiantemente antecipar futuras reuniões do trio, que parecem tão certas quanto a devoção que demonstram uma pela outra. Cansado de trilhar o tortuoso caminho do isolamento e da tristeza, o Boygenius mostra-se fortalecido pelo vínculo entre Phoebe, Lucy e Julien, quase tão definitivo quanto a certeza da audiência de que, mesmo em momentos de crise — seja ela provocada por uma nova pandemia ou um segundo álbum surpresa de Taylor Swift —, a banda é incapaz de decepcionar.
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