Jão — SUPER
Em algum lugar entre a ingenuidade da infância e as complexidades da maioridade, há um universo inóspito e caótico, repleto de frustrações e descobertas. Os dramas ilimitados da adolescência são capazes de tornar qualquer jovem em um protagonista excêntrico e atrapalhado de uma série teen, comicamente atormentado por dilemas banais, constrangimentos e fantasias indecentes. Mais esmagadores ainda, os impasses e conflitos da fase adulta produzem contatos perturbadores com uma realidade que, despida de qualquer ficção, traumatiza, fortalece e amadurece. Por mais universais que algumas experiências das duas faixas etárias possam ser, Jão escolhe, em seu quarto álbum, examinar a dicotomia entre esses dois períodos de sua vida por meio de lentes essencialmente opostas, mas complementares.
SUPER é uma coletânea de histórias dos mais diversos gêneros. Nas catorze faixas do disco, o cantor de vinte e oito anos expõe suas vivências amorosas e melancólicas com poucas reservas por, provavelmente, compreendê-las como experiências indispensáveis para seu amadurecimento — não se importando com o quão dolorosas elas tenham sido. Conceitualmente divididas em duas seções (A e B), as primeiras sete canções do álbum trazem sonoridades familiares para o catálogo do artista e relatam histórias açucaradas, românticas e confessionais. Grande parte das músicas da primeira fração do disco produzem uma atmosfera ensolarada e empolgante, tomada por um otimismo típico dos primeiros amores, das luas de mel e, é claro, da própria adolescência.
Liricamente objetivo e musicalmente conflitante, SUPER pretende ser tão grande e impactante quanto o título sugere. Antes do lançamento do álbum, um trailer repleto de efeitos visuais foi divulgado nas redes sociais e, no dia seguinte, numa entrevista para a Folha de São Paulo, Jão revelou ter recebido um conjunto de composições inacabadas do Cazuza. O ícone carioca dos anos oitenta é uma referência antiga para o cantor paulista e, tanto no Prêmio Multishow quanto no Rock In Rio do ano passado, o artista apresentou suas próprias versões de clássicos de Cazuza para milhares de espectadores. Desde a primeira faixa do novo álbum, a revanchista Escorpião, é notável o esforço de Jão para mostrar algum amadurecimento pessoal e artístico, sem se distanciar de suas referências musicais. Ainda assim, a despeito de suas tentativas de imprimir o carisma inigualável de sua principal influência na forma como performa a faixa, o resultado é uma performance vocal quase monótona que opera em um mesmo tom por todos os dois minutos e meio da faixa. Por mais furiosas que as promessas no refrão de Escorpião possam parecer, a irreverência que Jão parece tentar empregar é convertida em um desânimo que, por vezes, volta a assombrar os outros trinta e nove minutos do SUPER.
No SUPER, a nostalgia deixa de ser um mero sentimento para tornar-se o componente principal do projeto mais atrativo da carreira de Jão. Desde a batida em 8-bits de Gameboy às narrativas saudosista de faixas como a sonhadora Maria e a melancólica Julho, o primeiro ato do disco oferece confissões melosas, mas também reflexões valiosas que só a maturidade pode proporcionar. Enquanto Alinhamento Milenar figura como uma das canções mais esquecíveis do álbum, Julho é o real ponto de partida do SUPER. A ponte orquestral da faixa e a voz limpa de Jão nos últimos segundos da canção impressionam, mas tornam as harmonias vocais do restante da música especialmente desnecessárias ao provar que ele é mais do que capaz de sustentar boas performances acústicas só com a sua voz e um violão.
Alguns dos momentos mais memoráveis do quarto álbum de Jão são, também, destaques gerais na carreira do artista. Sem pecar pelo excesso ou pela falta de criatividade, Eu Posso Ser Como Você é perfeitamente vulnerável ao apresentar uma confissão vinda de alguém que, no passado, teve sua autoestima destruída por uma traição e, durante sua tentativa de se reconstruir, se viu cometendo o mesmo delito. A faixa é mais do que uma história de revanche, é uma exposição crua de suas imperfeições: “chame de vingança, troco ou raiva, mas preciso admitir/ Eu fiz porque eu quis”, canta sobre uma batida tão sedutora quanto sombria. “Fui leal de um porto a outro, eu só queria viver um pouco/ Como você fez, eu fiz”. O baixo, a percussão e a guitarra no segundo refrão de Eu Posso Ser Como Você são explosivos, surpreendentes e potencializadores não só da voz de Jão, mas de toda a narrativa da música.
O lado B do SUPER introduz outras manifestações sinceras de um amadurecimento doloroso. “Não é porque você sente falta que você me ame”, diz, em Se o Problema Era Você, Por que Doeu em Mim?, canção que sucede o synth pop divertido de Sinais. Mas é na despretensiosa e carismática Locadora que Jão volta a capturar a atenção do ouvinte com uma produção tão insinuante quanto a letra, que fala de uma relação passada. Mais uma vez, a nostalgia surge não só na produção ou no título, que referencia os estabelecimentos já extintos pelo streaming, mas também nas experiências ambientadas em um universo mais sereno que a pressão da maioridade ainda não alcançou.
Seu desapreço pela desordem da capital paulista é, aliás, tema da intensa e sensata São Paulo, 2015, penúltima canção do SUPER. Com seus sintetizadores e batidas bem coordenadas, a faixa é uma ode crua e cruel do que a cidade cosmopolita tem a oferecer para além dos deslumbres de uma vida noturna frenética. “São Paulo é uma droga e vai usar você”, alerta Jão. A composição excede as temáticas por vezes juvenis do disco e impressiona pela cadência acelerada e intrigante. São Paulo, 2015 vai além das vivências específicas de Jão no centro urbano: é um conto preventivo e uma realidade para muitos que, assim como ele, têm ou tiveram suas juventudes ambientadas nos limites ansiosos e agitados da esmagadora São Paulo.
Representando deméritos mais nítidos, as escolhas de produção de diversas faixas rivalizam com as letras e formam desalinhamentos frequentes. Quando o artista acerta na instrumentação, entrega performances vocais incapazes de provocar qualquer reação no ouvinte, como é o caso da própria Escorpião, mas também de boa parte da faixa Rádio. Em um primeiro momento, as descompromissadas Me Lambe e Gameboy podem não surtir um efeito negativo, mas quando essas mesmas narrativas são reproduzidas inúmeras vezes em outras canções, não há como não cogitar interromper por completo a experiência do SUPER. A insossa Alinhamento Milenar é tematicamente semelhante, senão idêntica, não só às suas duas antecessoras, mas também à Lábia, canção que a sucede na tracklist. Partilhando um mesmo denominador comum, as quatro faixas são declarações românticas pareadas a menções sexuais ora implícitas, ora explícitas.
Os momentos em que o álbum brilha são também os que Jão, já próximo aos trinta anos, divide suas contemplações íntimas por meio de letras inteligentes, hábeis em atestar seu amadurecimento. Coincidentemente, todas as faixas realmente capazes de provocar alguma impressão à longo prazo residem no lado B do SUPER, notoriamente enfraquecido por sua parcela radiofônica e genérica. O cantor não é exceção ao problema que atinge a maioria dos artistas pop masculinos mundo afora e raramente toma riscos artísticos em sua carreira, resultando em mais um projeto castrado pela demanda mercadológica de apresentar um ou dois possíveis hits.
Apesar das super produções visuais, SUPER convence menos como um álbum completo e mais como uma oportunidade de conhecer o potencial de um artista promissor que, enquanto ainda não atinge seu verdadeiro potencial, entrega trilhas sonoras para viagens com amigos na mesma proporção em que catalisa sentimentos legítimos, potentes e próprios da fase adulta.