CAJU – LINIKER
“Quero saber se você vai atrás de mim num aeroporto”, questiona Liniker, na primeira frase da primeira faixa do CAJU. Desde o início, o álbum se apresenta como uma experiência pessoal e íntima, escrita em versos que tecem a narrativa escolhida pela cantora para se tornar o seu segundo álbum solo de estúdio.
Sabemos o quanto é rica a história da composição brasileira no que diz respeito a temas: falamos sobre arte, sobre cultura, sobre a beleza dos nossos lugares, a dor e a delícia de sermos o que somos e sobre prazeres e dificuldades na montanha russa da vida. Não poderia ser diferente com CAJU, mas, em especial, reserve um tempo para apreciar um álbum que fala sobre amor. E, antes que você se pegue pensando “mais um?”, saiba que este é um amor diferente; um amor com recortes, que fala através de linguagens e que se expõe.
E, nesse mesmo princípio, a experiência Caju, em suma, é sobre exposição. É sobre abrir um livro de canções que é pessoal, onde os mais intensos desejos e memórias estão, agora acompanhados de belas melodias pensadas para reunir gêneros como o R&B, o pagode, o soul, diversos nuances da música brasileira e alguns temperos modernos da EDM – uma miscigenação de gêneros, tal como é o seu país de origem: uma composição rica e expansiva.
As colaborações do Caju são, também, peças chave para amarrar essa obra, trazendo um pouco da identidade dos artistas convidados como um sarau, onde não há disputa por espaço, mas sim um evento caloroso onde todos fazem música juntos. Isso acontece com a dupla Anavitória, com Amaro Freitas, com o criativo grupo BaianaSystem, com a talentosa Melly, com Priscila Senna, com Lulu Santos e Pabllo Vittar na mesma canção e, por fim, com a dupla Tropkillaz.
Antes do faixa-a-faixa, faz-se necessário estabelecer um pano de fundo sobre a carreira de Liniker para entender como a autora chegou até aqui, resposta para alguns “porquês” do álbum. É natural da cidade de Araraquara, no estado de São Paulo, musicista desde muito jovem, mas estreante do cenário da música brasileira no ano de 2015, ao lado d’Os Caramelows. A cantora fez parte do grupo e compôs diversos trabalhos como Remonta, Cru e Goela Abaixo – onde está inserido o hit Calmô –, dos quais atraíram atenção da crítica e uma indicação para o Grammy Latino.
Já em 2021, a artista dá um grande salto e estreia solo com o Índigo Borboleta Anil, um álbum igualmente excepcional ao seu nível de excelência, desta vez relatando sentimentalidades e reflexões internas a ver com sua percepção do mundo ao seu redor. Tão profundo é o trajeto que Liniker traça na obra que até mesmo o menino Miguel e sua mãe, Mirtes, são homenageados pela artista ao lado de Milton Nascimento. O álbum não é belo somente porque tem tons de carinho, mas porque é também uma expressão de dor e descontentamento com injustiças sociais que lhe tangem. Uma redescoberta e reaproximação de Liniker consigo mesma, a obra é um sucesso resoluto que rendeu inúmeras aclamações, a vitória do Grammy Latino de Melhor Álbum MPB e uma turnê mundial que se estendeu até 2023.
É durante a turnê Índigo Borboleta Anil pela Europa que a história do Caju começa. Ao passar por países como Espanha, Portugal, Reino Unido, França e Holanda, sendo este último o background de diversas vivências da cantora que se tornaram músicas, a jornada foi um sucesso e deu espaço para que Liniker escrevesse os capítulos finais desta era com maestria e, ao mesmo tempo, começasse a, literalmente, viver o Caju. Você pode conferir mais sobre como foi esse processo aqui.
De antemão, CAJU é muitas coisas: uma persona, a faixa-título, o nome do álbum, um mote e uma marca. A cantora faz até mesmo uma brincadeira científica a certo modo, utilizando-se de uma prosopopeia para explicar como um caju, o fruto, tornou-se ela mesma. “Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida / Quem me chamará de amor, de gostosa, de querida? / Que vai me esperar em casa, polir a joia rara / Ser o pseudofruto, a pele do caju“.
Faça-se a ressalva para uma produção musical magnífica, a letra, neste caso, é quem questiona ao interlocutor: quem está preparado para amar uma pessoa como eu? Liniker quer viver um romance como Um Amor Para Recordar, mas você já parou para perguntar-se como funciona o amor para uma pessoa trans? Acompanhe a primeira faixa da obra com atenção e, em seguida, um convite para experimentar os próximos 65 minutos com o mesmo paladar.
TUDO é o primeiro single do Caju, lançado em julho de 2024, assinada por Liniker, Fejuca e Gustavo Ruiz e com co-produção de Nave. “Uma apropriação muito bonita de mim”, escrita sob um manto delicioso de autoestima que é construída com o tempo. A faixa acompanha um clipe artisticamente ensolarado, que conta com um balé orgulhoso e auto referenciado. Nesta canção, e também no álbum como um todo, ora a cantora sussurra intimamente com o ouvinte, ora grita para que todo mundo possa ouvir: “Deixa eu ficar na tua vida / Morar dentro da concha / Do teu abraço não quero largar“.
VELUDO MARROM fecha um terceto desse poema de amor com classe. Mais emocional e dramática, a faixa começa com o som de uma guitarra elétrica e alguns murmúrios a sós e escala em um crescendo magnânimo, até que se encerra ao som de uma grandiosa orquestra. O mais interessante na faixa é a forma como seu tempo se discorre em meio aos vocais e instrumentos, um sendo encaixado ao outro de cada vez, como as coisas têm seu tempo certo para acontecer. E assim sintetiza Liniker, quando fala sobre, sendo “algo que eu psicografei para viver agora”. Confira mais aqui.
A segunda estrofe é composta por cinco versos: AO TEU LADO, ME AJUDE A SALVAR OS DOMINGOS, NEGONA DOS OLHOS TERRÍVEIS, MAYONGA e PAPO DE EDREDOM. Note como a composição das cinco faixas tem um storytelling linear, objeto de comparação com um relacionamento que, provavelmente, todo mundo já viveu ou há de viver. Trata-se de um momento a dois, com altos e baixos, uns bons, outros intensos – seja pelo que é ardente ou pelo que é terrível –, narrado pela autora do álbum e também por algumas de suas parcerias.
A faixa com Amaro Freitas e Anavitória é uma colcha retalhada de sonhos onde você pode se esparramar com conforto, uma balada lenta e provençal arranjada no piano e embelezada pelo som da harpa. Enquanto isso, a canção com o BaianaSystem explora outra frente, mais frenética e gingada, quase como um toque de cabula em som de rock, algo que somente Russo Passapusso faz com sua voz e que os gênios do grupo fazem na produção com perfeição. A junção de grandes mentes pensantes como essa só poderia resultar em uma das melhores faixas do álbum.
A seguir, o próximo terceto é uma viagem interna que remonta a narrativa de TUDO, explorando outras perspectivas de uma mesma pessoa. É neste momento do álbum que você escutará Liniker falando sobre seu acréscimo de estima por si mesma. POPSTAR é um R&B assertivo e firme que surfa na onda de um Hip Hop. Os versos são afiados e dão a letra sobre o quão grande é a pessoa com a qual você está lidando. Ela não quer mais o pouco. O eu-lírico da faixa é alguém que você pode criar empatia e até mesmo se identificar, mas não sem antes vestir uma couraça de autoconfiança. A melodia é delicada, sim, e conversa com o restante do álbum, mas é também empoderada pelos graves e pelo contrabaixo, enriquecendo o conteúdo de uma forma robusta. Isso é o que podemos chamar de inteligência musical, quando a comunicação entre a melodia e a letra se complementam.
FEBRE é o pagode que faz a quebra dessa couraça e mostra um pouco de vulnerabilidade, mas não se engane: não é uma recaída. “É puro meu amor e sincero, não tem lero-lero / Tô te dando a letra porque é você que eu quero / Vinte e quatro horas do meu lado e cê vai ver / Que eu sou mais que magia, muita coisa, pode crer.”
Verbalizar sentimentos é uma tarefa difícil. Expressá-los é ainda mais e requer uma boa dose de coragem. A ordem das canções apenas comprova a teoria de que esta é uma declaração de amor de alguém que se conhece, busca seus prazeres nos pequenos detalhes e que volta para casa ao amanhecer após uma noite a dois, esperando e oferecendo mais, desde que saiba dar o devido valor. A canção rendeu uma colaboração ao vivo com o cantor Thiaguinho, que mesmerizou a plateia e integrou o EP do cantor, Sorte.
POTE DE OURO, por sua vez, é um aviso: mesmo depois do que foi vivido em FEBRE, o posicionamento é o mesmo. O bolero é um hino sobre autoestima e colabora com Priscila Senna, dona de um potente vozeirão, amarrando o assunto e comemorando “a vida cantando para o povo”.
Por fim, o último terceto é uma inclusão de duas faixas colaborativas que bebem da fonte da canção anterior, mas com alegria e dança. DEIXA ESTAR conta com Lulu Santos e Pabllo Vittar, costurando um hit dançante com influências da música Disco e do Blues. Um verdadeiro rolê catártico, você pode se ilustrar em uma noitada com o puro e único objetivo de se curtir. A música é seguida por SO SPECIAL, parceria com o Tropkillaz, gravada totalmente em inglês, o que explica sutilmente sua letra apimentada. Quanto à produção, é interessante salientar o quanto é possível reconhecer a sonoridade da dupla de DJs, assim como a autoridade de Liniker, configurando uma parceria igualmente ambivalente e boa.
Esta poderia ser a música em que sobem os créditos quando a obra se encerra, mas a última faixa do álbum é TAKE YOUR TIME E RELAXE, um acústico acompanhado de um baixo sem muitas pretensões, apenas a de criar mais um momento de intimidade entre a compositora e seu ouvinte, trazendo um toque especial de humanização. Com esta carta aberta endereçada a si mesma, em primeira pessoa, Liniker agora aprendeu a andar depois de ficar de pé – sua emancipação como artista, que está pronta para trilhar novos caminhos e oferecer muito mais do que sabe e vem aprendendo. Por isso, é certo dizer: esse é somente o começo de muitas novidades que virão em breve.