Lollapalooza, retorno e luta anti-racista: a trajetória do Medulla na indústria
Criada em 2005, no Rio de Janeiro, a banda Medulla, que estava parada desde 2018 em um hiato sem previsão de volta, retornou aos palcos para uma apresentação memorável e única no Lollapalooza, no Palco Chevrolet, no dia 25 de março às 12h30. O grupo compôe o line-up do festival ao lado de Twenty One Pilots, Melanie Martinez, Tame Impala, YUNGBLUD, The 1975 e outros.
O grupo carioca, formado pelos irmãos Keops (voz) e Raony (voz) e os músicos Tuti AC (baixo) e Alex Vinicius (guitarra), mistura elementos do rock, rap, indie e MPB em sua sonoridade ao longo dos anos. Apesar da pausa de cinco anos na cena da música, Medulla conquistou fãs ao redor do país e marcou conquistas inimagináveis para quem estava parado na indústria.
Recentemente, Medulla lançou o single “Fuder e Dormir Juntin”, que será apresentado pela primeira vez ao vivo no LollaBR e marca a volta triunfal e marcante de Keops, Raony, Tuti e Alex. É a primeira vez da banda no festival e também que a banda se sente convidada e bem-vinda em um palco.
Confira a entrevista:
Em comparação ao começo do Medulla, como vocês enxergam a banda hoje em dia?
“Que engraçado! O Medulla é uma banda que nasceu no final da era das gravadores e no começo da era do mainstream e digitalização da música. Passamos por muitas fases. Essa cena indie e alternativa, que a gente sempre permeou, foi mudando e dançando conforme a música, então vimos muitas revoluções acontecerem. É muito doido porque a nossa diretriz sempre foi se investigar, descobrir novas coisas e ser uma banda que se reinventa. Nunca quisemos estar no mesmo lugar e fazer o mesmo tipo de som. Eu acho que o tempo e as coisas foram acompanhando esse lugar híbrido que o Medulla tem. Ao olhar para a banda hoje em dia, eu sinto que a gente pode ser livre. Durante muito tempo isso foi um paradoxo porque esse lugar indie precisava ser um só, por muito tempo. Então, eu sinto que a hoje estamos muito certo e na hora certa, podendo ser quem nós somos de verdade. Aquilo que estávamos investigando no começo como banda experimentativa, hoje faz muito mais sentido do que ser aquela velha metamorfose ambulante. Estamos felizes, sobretudo, de sermos nós mesmos”.
E como foi esse processo de crescimento e amadurecimento da banda?
“Entre os trancos e barrancos. Os famosos dias de luta e dias de glória, mas eu acho que o mais legal foi que sempre nos apegamos ao processo e nunca fomos uma banda que só olhava para o sucesso. O processo era muito divertido. Sempre nos divertimos criando e fazendo coisas diferentes. Tanto que fizemos, durante muito tempo da nossa carreira, uma campanha de EPs em formatos e linguagens diferentes das coisas que que apresentávamos e vestiamos na abordagem de cada um deles. O primeiro era no MySpace, na época em que ele tinha nascido. O segundo foi uma fita cassete, que naquela época nem existiam mais fábricas como existe hoje em dia.Compramos as fitinhas no posto de gasolina e nós mesmos copiamos elas.A gente vendia cada uma por um preço ‘vale quanto quiser’. Depois lançamos um playbotton, um botton de camisa que plugava um fone e tinha um MP3 dentro. Fomos a única banda brasileira a lançar isso no Brasil. Mias tarde, lançamos um CD na copiadora quando ninguém mais lançava discos físicos. Eu sinto que esse processo fez a gente querer fazer formatos e clipes muitos diferentes. As nossas fotos nunca eram só fotos de banda posando na frente de algo. Sempre tinha um editorial. Eu sinto que amadurecemos sem se desgastar. Fomos investigando e gerando um relacionamento com o público ao invés de ser só uma coisa para vingar e funcionar. Sinto que o nosso processo de amadurecimento foi mais se divertir e fazer as coisas que queríamos fazer e não, necessariamente, o que o mercado ditava. Muitas vezes as pessoas viravam para gente e falavam ‘Cara, para tudo! Você só tem que fazer um disco!’ e não viamos sentido em lançar só um disco. Então ficamos anos lançando só single e compactos, nos fazendo amadurecer e vivenciando isso com o publico”.
Qual foi o maior desafio de ir contra o mercado e a maré da indústria musical?
“Eu sinto que não é ir contra o mercado porque o mercado também estava se redescobrindo. As gravadoras estavam se redescobrindo e entendendo o que eram. Essas plataformas que estavam chegando também estavam decobrindo o que eram e isso permanece até hoje. Quando o TikTok apareceu as pessoas falavam ‘Não, porque o TikTok vai mudar a maneira das pessoas de ouvirem música’ e nós músicos olhávamos assim ‘Como?’. Hoje a gente vê como, sabe?! Realmente mudou a maneira das pessoas fazerem e ouvirem música. Então, eu não sei se a gente foi contra o mercado. Eu sinto que a gente foi se reinventando junto dele. Por um outro lado, no circuito indie rock, que foi onde a gente mais caminhou, fomos contra. Porque o rock é contra o rock muitas vezes. Ele aponta para o Twenty One Pilots ou Imagine Dragons e fala ‘Não, isso não é rock’. A gente sofreu nesse lugar também porque o indie foi o que dominou o mercado do rock nesses últimos 15 anos e tem uma ditadura indie de você ser branco, elitizado, falar direito, etc, mas eu sinto que isso perdeu a linguagem com o popular, que é a nossa base. O Medulla, durante muitos anos, foi resistência nesse lugar. Hoje a gente é muito feliz e uma das nossas causas de voltar é a presença do Black Pantera, Jup do Bairro, Willow Smith e vários outros artistas que fazem rock com a sua própria linguagem, sem ser aquele velho rock e nesse lugar racial delicado. O Medulla, que é uma banda de caras pardos (eu, meu irmão, o Alex, o falando da batera preto) tem esse rolê do homem pardo ser convidado e não ser bem-vindo. Então por muitos anos a gente se viu em um rolê com bandas e pessoas que amamos, mas a estrutura do rock na hora de escolher uma banda para acessar um line-up jamais éramos nós. Eu já ouvi dizer que o Medulla não tocava em determinados palcos porque parecia com O Rappa, no auge do nosso corre. A gente só foi entender depois por uma questão de colorismo, por sermos um rock híbrido e periférico. Durante muito anos, esse rock não teve protagonismo e atenção até o ano em que a Marielle Franco foi assassinada e chacoalhou o Brasil. Isso trouxe para cima para emergir o Black Pantera, a Jup do Bairro, Kamaitachi e foi o que trouxe o Medulla de volta. “
Falando sobre a volta da banda, qual foi o motivo do hiato em 2018?
A gente pausou por dois motivos, mas eu sinto que o motivo incomum da banda era esse lugar estranho que tava o rock indie. É um lugar estranho mesmo, se você para para olhar, em 2018. Agora não é mais. Agora já virou passado, mas em 2018 era um lugar onde as pessoas não falavam de política, não conversavam sobre política e muitos ícones do rock eram racistas, como o Morrissey, Ultraje a Rigor e outros. Estava muito nebuloso para a gente tentar dialogar com essa estrutura e falar ‘O que tá faltando é conexão com o popular’. Então sentimos a necessidade de respirar porque achávamos que fazer mais um disco novo não seria legal e produtivo. Não estávamos com esse coração. Precisávamos de um tempo para fazer outras coisas e deixar a vida dar a volta dela e nos trazer de volta. Quando a gente decidiu parar, a Marielle ainda não tinha sido assassinada, então na época que começou a chacoalhada já tínhamos decidido parar e só olhamos de longe. A gente tinha batido o primeiro milhão em 2018, na última turnê do Medulla. Já sabíamos que íamos parar e vimos que batemos um milhão no “Abraço”. Foi essa respirada que demos que hoje a gente tem mais de dez milhões de players no TOP 5 do Spotify e com a banda parada sem fazer nada. Eu sinto que foi realmente o tempo que precisávamos para não se desgastar e o planeta dar essa rodada que ele deu”.
Quais as expectativas para abrir o Palco Chevrolet do Lollapalooza pela primeira vez?
A gente está muito feliz e empolgado de estar vivendo esse momento por tudo e, especialmente, pelo o que eu te falei. A gente está se sentindo convidado e bem-vindo pela primeira vez. Poder ser quem somos de verdade na nossa perfomance, jeito de falar e pele que habitamos. O Lollapalooza é esse lugar para vivermos isso, então estamos muito empolgados. Acabamos de lançar uma música nova, vamos tocar ela no LollaBR e vai ter participações especiais, então é um começo de uma nova história. O dia um. O dia um é o Lollapalooza. Tocando essa música nova e preparando a gente para todo esse ano que a gente está pra viver”.
E como surgiu a ideia de convidar o Lucas, da Fresno, e a Jup do Bairro para se apresentar junto no festival?
“A gente sente que show de festival tem que ser um show de festival. Um show especial. No Primavera Sound, a gente colocou um cenário de espelho de 6 metros e 11 músicos no palco, então queríamos algo diferente para o Lollapalooza. O show da Fresno no LollaBR do ano passado foi muito marcante para gente. Ver nossos amigos e a galera naquela parada. Quando ficamos sabendo que era o Blink-182, a gente falou que queuria muito chamar o Lucas para fazer uma música. Nessa estamos tendo uma relação de uma lente muito grande com a Jup, ela chamou a gente para gravar uma música, temos conversas filosóficas de horas e horas de chorar no ombro um do outro e eu sei que ela é muito fã da Fresno, além de ser o ícone do novo rock. Então queríamos fazer esse encontro do ícone do novo rock, que é a Jup, ser essa ponte, com o ícone do emo nacional, que é o Lucas. Já que o Blink-182 não vem, a gente vai coroar esse dia com o Lucas e a Jup”.
Vocês têm alguma temática que pretendem levar ao show?
“A parada do lolla é que o palco é muito grande. Muito muito muito muito grande. Um telão muito grande. Eu e meu irmão somos diretores de arte e trampamos com audiovisual já há um tempo, então a gente quis fazer um telão todo diferente de tudo o que já tinhamos feito antes, especial só para o Lollapalooza. A gente vai ter o saxofonista Alex Sá, Filipe Hitzschky tocando piano e o Nick Gomes que tem feito a turne com a gente. Não tem uma tématica, mas sim uma estética específica, que é a desse novo tempo nosso. Vamos levar para o palco essa nova estetica que está no clipe novo e essa brincadeira que o Medulla sempre fez nos EPs e compactos, de cada lugar ter uma nova linguagem. Sentimos que tem novas roupas, novos conceitos e é isso que vamos trazer para o palco no telão, no styling e repertório que escolhemos para tocar. Afinal, são poucas músicas. É um show curto, então escolhemos as músicas que tem a estética desse novo momento nosso e que soam mais próximas e mais permissíveis, além do novo single”.