Madonna - Ray of Light (1998) | Moodgate
Um novo sentimento para a música
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Madonna – Ray of Light (1998)

Madonna – Ray of Light (1998)

Em comemoração ao aniversário de vinte e cinco anos da obra, a redação da Moodgate revisita e dá seguimento à coletânea de álbuns clássicos que, por algum motivo, reinventaram a indústria fonográfica dentro de suas limitações. O escolhido para a ocasião é o Ray of Light, álbum de Madonna lançado no ano de 1998.

No que tange o cenário da cultura pop, o Ray of Light é um epíteto de inovação que pulou de cabeça sem medo de arriscar. Após explorar diversas estéticas, sonoridades e polêmicas, Madonna carrega um storyline muito interessante até os meses que precedem o lançamento da obra. Num contexto onde a cantora abertamente se posicionou a favor dos direitos LGBT+, atuou em prol da conscientização contra o preconceito do vírus HIV, destilou críticas contra o conservadorismo católico racista, posicionou-se e defendeu abertamente sua liberdade sexual como mulher e celebrou a tour feminina mais lucrativa de sua geração, Madonna inicia um novo capítulo que traduz musicalmente seu próprio amadurecimento como artista, como pessoa e também expressa seu recém contato com a espiritualidade.

Mas antes de explorar a musicalidade do álbum, é válido um disclaimer. Estamos em uma geração da indústria da música completamente análoga ao cenário da atualidade; a arte se propaga com pouco ou nenhum acesso à internet, ou seja, fora da realidade do streaming. O consumo massivo da música pop é restrito em primeiro lugar ao rádio – detentor de uma importância significativa –, seguido da venda de cópias físicas e da televisão. Numa era em que a propagação de informação é remissiva, o nicho é outro e o objetivo do artista também: transmitir a sua mensagem através das mídias físicas como forma de um convite para prestigiá-lo em apresentações ao vivo. 

É de interesse do álbum vender lirismo e canções, diferentemente dos materiais da atualidade no pop que buscam enaltecer o artista e veicular numericamente em redes sociais. Não estando limitado a trinta segundos de vídeo, é comum vermos no Ray of Light canções mais longas e também minuciosamente trabalhadas em três principais aspectos: a letra – expressão espiritual de Madonna –, a produção musical – com elementos inusitados e o toque de William Orbit – e a mensagem, apresentada através da estética visual leve e da relação background-timing em que a obra está inserida. E assim nasce o magnum opus de Madonna, considerado o melhor de seus trabalhos.

Fotografia de Mario Testino, responsável por todo o ensaio de fotos do álbum.

A pré-produção do Ray of Light conta com eventos extremamente ímpares na vida de Madonna que foram peças chave na confecção da obra. A primeira delas é a inserção da artista na Cabala, que dá abertura para seus estudos no campo espírito-religioso, em especial aos dogmas do judaísmo, do budismo e do hinduísmo, que futuramente vem a ser elementos de presença constante no desenvolvimento do álbum. As viagens de Madonna, sejam elas no plano físico – como ao Oriente Médio –, ou astral – através da prática de Ashtanga yoga –, são ases influenciadores das canções. Em seguida, a maternidade, que havia sido catalisadora de um período intenso de introspecção e autoconhecimento. Madonna havia recentemente se tornado mãe de sua primogênita Lourdes Maria, o que inevitavelmente a afastou do trabalho por um tempo, este essencial para seu processo de amadurecimento, onde a cantora descobre o significado substancial da vida além da música.

Por fim, o terceiro dínamo da composição são as influências do EDM que ganharam notoriedade durante os anos noventa. A ascensão de gêneros como o Eurodance, a house music (e suas variações) e o techno, propiciados pela modernização da tecnologia na indústria da música, oportunizou a distensão de sons artificiais e orgânicos que fossem mecanicamente trabalhados, quebrando a mediocridade dos padrões da música pop do fim dos anos oitenta. Esses gêneros eram nichados e imbuídos juntos num único pacote de “música eletrônica” que ainda não havia sido explorada no mainstream, sendo esse o motivo que chamou a atenção de Madonna e estimulou sua procura por William Orbit para apostar alto. Mesmo tendo a possibilidade de trabalhar no comodismo do sucesso do R&B ao lado de Babyface (a dupla Bedtime Stories e Erotica), Madonna escolheu reinventar sua arte e apostar no novo. E, com isso, foi uma das pioneiras a trazer a música eletrônica para o cenário pop. 

Madonna ao lado de WIlliam Orbit durante a produção do Ray of Light.

Uma vez tendo iniciado a gravação do disco em concomitância com a produção, é certo dizer que o mérito de Orbit é frugal, tendo em vista as letras que Madonna escreveu após ter ouvido demos que o produtor britânico havia enviado. A obra é inteligentemente amarrada em um começo, meio e fim que é consistente. Ao mesmo passo em que a cantora insiste em adicionar elementos sonoros orgânicos como sinos, sussurros e ruídos, a produção os sintetiza de maneira harmônica ao beat eletrônico presente no fundo da maioria das melodias. A cereja do bolo são os vocais de Madonna que haviam sido treinados para o filme Evita, dos quais buscam explorar os graves e vibratos de sua voz que ainda não haviam sido apresentados ao mundo. 

A obra se destaca pela sua autenticidade, seja pelo fato de Madonna expressar nuances de sua alma ou pela questão mercadológica que, dado o contexto, não haviam comparações diretas a se fazer para com as canções. Ninguém estava, naquele momento, explorando a musicalidade que a Madonna trouxe com o Ray of Light, o que o tornou excepcional no mainstream, diferenciando-se do teen pop em alta de Britney Spears, Christina Aguilera e Backstreet Boys. As letras transcrevem o lifestyle e a etapa da vida da artista, como a maternidade, a espiritualidade e o amor – não aquele que parte o coração, mas sim o amor universal, do qual falaremos mais adiante.

O início do álbum é ameno e já traz uma súmula dos 66 minutos sucedem; Drowned World/Substitute For Love é a primeira faixa da obra e também single. Com uma introdução instrumental baseada em sons psicodélicos que abrem para uma sequência melódica de música ambiente, os vocais de Madonna entram e quebram a expectativa daquela mesma cantora aguda, teen e exagerada, traduzindo através do lirismo a serendipidade da cantora em descobrir satisfação pessoal em ser mãe e nos prazeres de se encontrar espiritualmente. O videoclipe, por sua vez, ilustra isso: a cantora está seguindo no sentido contrário de tudo o que viveu até ali, fugindo da mídia e da superficialidade da fama para se deparar feliz ao chegar em casa e abraçar sua filha – um acrônimo visual de seu conceito de paz. 

Swim continua a narrativa da cantora, que demonstra sua busca por seguir em frente em sua nova versão e, consequentemente, deixar a velha para trás. A progressão de acordes, por sua vez, faz seu papel: a música não tem um tom motivador, mas sim serve notas de desabafo e abstração. O tom emocional é presente tanto nos vocais quanto nos elementos sonoros que Madonna escolheu para a música, fazendo alusão a onda de sentimentos que vinha carregando durante a composição do álbum. É possível ouvir o som de água corrente antes que a mixagem da guitarra elétrica se faça presente. E a letra acompanha a história: “Eu não posso carregar esses pecados nas minhas costas, não quero mais carregar/ Eu vou carregar esse trem para fora dos trilhos, eu vou nadar para o fundo do oceano”.

Em seguida, a primeira catarse acontece: Ray of Light, terceira faixa do álbum e também o segundo single. Diferentemente de Frozen, que havia sido lançado primeiro, a self-titled traz um novo dia após uma noite sombria. Enquanto Madonna pulava de cabeça no experimental de sua voz, Orbit faz um trabalho singular ao lado da cantora quanto à produção musical, que acelerou a narrativa do álbum com nuances de EDM – techno, trance e Eurodance – junto do new age, oriundo do interesse de Madonna pelo misticismo oriental. O videoclipe traz imagens aceleradas do cotidiano, onde pessoas se arrumam para trabalhar e se preparam para começar o seu dia. O diretor Jonas Akerlund faz um ótimo trabalho ao colocar as cenas do tempo decorrido, do céu e do pôr do sol enquanto ocasionalmente Madonna aparece vestida de forma simples, fazendo movimentos e danças estranhas. Com o cair da noite, a artista embarca numa viagem transcendental numa boate, onde o clipe se encerra. O tema da música é claro: liberdade – o que casa confortavelmente com a história apresentada na faixa anterior onde divide conosco o seu sufrágio e o consequente desprendimento deste.

Dando sequência, é válido apresentar o restante da obra em blocos: o primeiro, com as três primeiras faixas, seguido do segundo quinteto da obra, uma verdadeira montanha russa. Ao ouvir o projeto inteiro e na sequência apresentada, é possível notar uma intercalação entre canções eletrizantes procedida por uma melodia mais calma, interessantemente construindo um motor sonoro onde a Madonna passa por momentos de euforia e introspecção ao mesmo tempo. Skin é um dos maiores exemplos da influência eletrônica no álbum e conta com diversas interferências de áudios bizarros, sussurros, ruídos espaciais e sinos. Nothing Really Matters volta em um diminuendo para expressar a aliteração mântrica de que nada realmente importa. A canção é também o quinto e último single do álbum, com as fatídicas cenas dirigidas por Johan Renck de Madonna dançando com seu quimono vermelho, inspirado pelo icônico filme Memórias de Uma Gueixa.

Sky Fits Heaven é a materialização dos estudos de Madonna sobre a Cabala, dando uma livre e mística interpretação da cantora ao Torá, o livro sagrado judaico. Em especial, esta canção e a próxima, Shanti/Ashtangi são as faixas que mais se aproximam da mensagem espiritual da intérprete por trás do álbum. Nas palavras de Madonna, o interesse pelos textos sagrados do budismo, do hinduísmo e do catolicismo revelam uma busca por retóricas internas como ser humano e também um profundo autoconhecimento. Ainda falando sobre a oitava faixa, que interpreta um mantra, é completamente cantada em sânscrito/hindi e reverencia os mestres das práticas do Ashtanga Yoga e do Mangalam.

À esquerda, Madonna por David LaChapelle, 1998. À direita, Madonna no clipe Nothing Really Matters, por Johan Renck, 1999.

Frozen é a nona faixa do álbum e merece um respiro. A canção é um divisor de águas, seja no álbum ou mesmo na carreira de Madonna, estando entre seus maiores sucessos, o que é uma surpresa, já que emplaca-se ao lado de pops chicletes que a intérprete já havia lançado. Se considerarmos que até então era dia no storytelling de  Ray of Light, Frozen representa o cair da noite. Uma profunda conexão da compositora com seus estudos religiosos, a canção fala sobre o amor espiritual, aquele que está acima do amor carnal. O eu-lírico – do qual deixo à sua interpretação quanto à identidade – se mostra em um papel convincente onde há um convite para explorar o que ainda não foi visto, vivido e sentido. A canção começa austera, com a presença de violinos que precedem a entrada da dramática ambience music. A canção é um downtempo crescente e seu videoclipe, dirigido pelo britânico Chris Cunningham, foi filmado no rio Cuddeback, localizado no deserto de Mojave. O rio é seco e o solo rachado é palco da personificação da deusa Hécate – num belíssimo vestido preto desenhado por Jean Paul Gaultier –, com mãos cobertas por mehndis que fazem uma coreografia oriental. Novamente a noite é cenário da obra, tempo em que a personagem ascende em sua verdadeira forma e liberta sua essência. Sabemos que o deserto é frio quando anoitece, mas a fotografia empenhada no clipe cria a performance de um oásis de gelo, dando match com o título da canção. 

Por fim, o último quarteto é uma manifestação do eu interior de Madonna, pautando temas como sua filha e sua mãe, da qual nunca havia cantado anteriormente. The Power of Goodbye se destaca pelo videoclipe, consagrado como o quarto single do álbum, onde Madonna disputa uma partida de xadrez com o mesmo personagem supracitado em Frozen, não nomeado, com quem nutre uma relação de amor e idolatria, porém insubmissão, retratada na cena em que a mulher de cabelos escuros derruba as peças do tabuleiro no chão, tentando reter o controle daquele relacionamento. To Have and Not to Hold introduz a bossa nova na sonoridade do álbum, mais um experimento da cantora ao lado de Orbit que emancipa o gosto e a musicalidade, fugindo do pop alegre em evidência da época.

É notória a diferença tonal entre Little Star e Mer Girl. Enquanto a primeira é quase que uma canção de ninar eletrônica dedicada a Lourdes Maria, sua pequena estrela, Mer Girl é melancólica. A inspiração para a música foi uma visita que Madonna fez à casa de seu pai, quando se encontrou com o local onde sua mãe foi enterrada. Na melodia, há pouco acontecendo ao mesmo tempo; ora a guitarra se faz presente, ora dá espaço aos sinos, seguido de notas artificiais e psicodélicas enquanto Madonna fala mais do que propriamente canta. 

O álbum se encerra por aqui, senão pela versão japonesa que conta com uma canção bônus, ritual comum nos anos noventa do qual atendia questões do mercado. Por anos, a música esteve indisponível ao nicho ocidental, o que pode ser considerado uma pena, já que Has to Be é uma das melhores canções do álbum, tanto no que diz respeito à letra quanto à produção musical. A faixa é um apanhado de tudo o que o Ray of Light retrata – uma viagem cósmica e caótica dentro de si mesma. A canção é de co-autoria de Patrick Leonard e foi disponibilizada recentemente nas plataformas de streaming em comemoração ao aniversário de vinte e cinco anos da obra, desta vez para todo o público.

Em síntese, o álbum é, certamente, o melhor entre os trabalhos de Madonna, embora tenha uma árdua competição com outros de seus títulos. A temática madura recebe um tratamento artístico magnânimo por parte da cantora americana e de sua equipe de produção, encabeçada por ela mesma – que participou integralmente de todos os processos de criação –, quanto de William Orbit, Patrick Leonard e Marius de Vries. Foi lançado pela Maverick Records, gravadora de Madonna ao lado de Frederick DeMann e Ronnie Dashev, em parceria com a Warner Records. Por sua excelência, recebeu indicações ao prêmio Grammy de Álbum do Ano e venceu em quatro categorias, incluindo Melhor Álbum Pop na edição de 1999. A obra também deu origem à Drowned World Tour, uma das mais memoráveis da artista.

O legado de Ray of Light é incontestável. Além de ser predecessor da música eletrônica na cultura pop, é sabido que Madonna ajudou a difundir os estudos da Cabala e quebrar paradigmas que acompanhavam a coletânea de dogmas judaicos. Abaixo, fica o convite para embarcar numa viagem lisérgica e transcendental que se faz presente há duas décadas:

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