Beyoncé — COWBOY CARTER
Para a Vogue, Björk declarou que, ao sentar-se para assistir a um filme, o devora como uma baleia. Primeiro, passa pela cauda, parte de menor volume. Depois, abocanha o meio e, por fim, engole-a por inteiro. Nitidamente, há metáforas por parte da islandesa para dizer que, ao deparar-se com manifestações artístico-culturais, não há pressa em seu consumo, mas há deglutição de cada detalhe para, por fim, compreendê-las. E parece que Beyoncé concorda com a relação que Björk traçou com a arte. Em seus últimos projetos, a texana não poupou esforços para mostrar ao mundo que, embora almeje êxito comercial, pouco se importa com as fórmulas capazes de consumir sua identidade enquanto artista; que pouco deseja conectar-se ao público através de exposições banais de sua privacidade, preferindo o fazer de maneira holística, compreendendo suas experiências e conclusões como parte de um todo e expondo-as ao mundo com a intenção de moldar e/ou remoldar as percepções próprias e de terceiros, o que é raro em tempos de busca incessante por dopamina.
A recusa a enlatar-se e conceber canções ultraprocessadas faz com que Beyoncé seja um alívio ao mainstream, que foi tomado de assalto por artistas medianos, simplistas e que, para estabelecer relação com seus ouvintes, se valem de repetições e narrativas egóicas que, por vezes, beiram à sociopatia. Mas isto não significa que os discos de Knowles afastaram-se do público incapaz de abocanhar baleias; é nisto, aliás, que mora o brilhantismo da artista. Com sua equipe, Beyoncé é capaz de, ao mundo, ofertar projetos capazes de tornar-se trilha sonora das corridas matinais e perdições noturnas na mesma proporção em que podem ser dissecados por seus arranjos, jogo de palavras, reivindicações socio-político-culturais e, acima de tudo, pelos rastros inconfundíveis da texana. Cada uma destas afirmações podem ser vistas em COWBOY CARTER, oitavo disco solo de Beyoncé, que chegou às plataformas de streaming na última sexta-feira (29).
Sob as premissas da música Country, COWBOY CARTER veio ao mundo e, consigo, trouxe vinte e sete faixas. O projeto é inspirado pela cultura do Sul e Oeste dos Estados Unidos, Rodeio, cinema Western e cowboys do Oeste. Assim como seu antecessor, que o antecede em uma jornada de três atos, o disco, intencionalmente, imerge seus ouvintes nas histórias da música estadunidense, resgatando suas raízes — o que é bem desenhado pelas participações presentes no álbum, como o quinteto formado por Beyoncé, Brittney Spencer, Reyna Roberts, Tanner Adell e Tiera Kennedy em um cover de BLACKBIIRD e a ode à Linda Martell. Para fortalecer suas narrativas, encontra respaldo na reimaginação de roteiros de filmes de velho oeste, como Cowboys do Espaço, Os Assassinos da Lua das Flores e The Harder They Fall. Mas não é somente em seus debates raciais e referências que se encontra ouro em COWBOY CARTER, já que a obstinação de Beyoncé pela quebra de expectativas — e regras — também confere grande personalidade ao projeto.
A primeira e décima segunda faixa, respectivamente, AMERIICAN RÉQUIEM E SPAGHETTI, talvez sejam as músicas que melhor resumem os acenos à anomia almejada por Beyoncé. Na primeira, a artista, através das lentes do Country e Americana, traz uma ode à missa católica para os defuntos, como quem se rebela contra aqueles que um dia tentaram a colocar à margem de novos atentos enquanto artista e, consequentemente, em um lugar artística, social e racialmente demarcado. Ela não poupa esforços para se fazer compreensível, o que fica explícito em suas entoações (“Costumavam dizer que falo ‘country’ demais/a rejeição veio, disseram que não sou ‘country’ o suficiente), que alvejam os que, no início de sua carreira, a criticaram por seu sotaque e os que, com a chegada de LEMONADE e seu primeiro aceno ao Country com Daddy Lessons, a criticaram por não carregar os signos do Country — que foram deturpadas pelo conservadorismo estadunidense.
Nas faixas subsequentes, Beyoncé continua a abordar tensões raciais, em BLACKBIIRD; vulnerabilidades, em 16 CARRIAGES, maternidade em PROTECTOR e a infidelidade, em um cover de Dolly Parton, JOLENE, mas é em SPAGHETTI que todos os lampejos de repulsa aos moldes tomam forma e rasgam os céus em plena tempestade. Com âmparo de Linda Martell — primeira artista negra a obter êxito comercial no Country e apresentar-se no Grand Ole Opry, palco de música Country de grande renome — e Shaboozey — artista em ascensão —, Beyoncé, sem comerdir-se, assume o que já estava explícito: os signos da música Country, como chapéus, esporas e cavalos, foram cooptados e integrados aos signos associados à artista. Logo na introdução, o conceito de gênero musical é questionado, descartado e, posteriormente, massacrado por Beyoncé, que flui em mix de Rap e Country. Aqui, foi categórica ao reafirmar, implicitamente, o que havia declarado a plenos pulmões: não é um disco Country, é um disco da Beyoncé.
Os empenhos empregados para que os símbolos do Country não sufocassem a essência de Beyoncé são atestados quando a artista declara que, por mais de cinco anos, maturou o projeto. E, para garantir o encontro entre distintos mundos, contou com o auxílio de seus produtores, como The-Dream, Swizz Beats e NO I.D., e vocalistas, músicos e oradores, como Willie Nelson, Stevie Wonder, Jon Batiste, Nile Rodgers e a dupla Dolly Parton e Miley Cyrus. Como resultado, há a brilhante TYRANT — que nos entrega toques de BEYONCÉ e LEMONADE — e a exaustiva II MOST WANTED — que é o único ponto baixo do disco e poderia, sem complicações, sentar-se ao lado de Pretty Hurts.
Quando anunciado, COWBOY CARTER pode ter criado, no grande público e lobbies da indústria, a crença em uma Beyoncé doce aos lábios que, um dia, a cuspiram — com doses de Keith Urban, Carrie Underwood e Miranda Lambert. E o grande equívoco de ambos foi esperar produção formulaica de uma artista cuja musicalidade exacerbada a permite mesclar Ópera e Country — como visto em DAUGHTER, que conta com trecho de Caro Mio Ben — e que, há pouco, compartilhou uma masterclass, através de um disco, sobre raça, gênero, sexualidade e House Music.
Talvez, para o próximo e último ato, seja fundamental compreender que Beyoncé pouco se importa com quão rápido seu público se sente em paz com seus projetos, já que despende parte significante de seu tempo em estúdio construindo material a ser primeiramente acariciado e lentamente ingerido; e com quão confortável é desvencilhar-se das amarras da tradição e imposições de moldes em um curto período para um público que, cada vez mais, afasta-se das profundezas e, quando em contato com estas, terceiriza suas interpretações e percepções,
Beyoncé Brasil
“COWBOY CARTER” É MARAVILHOSO!