Exaltado de norte a sul deste Brasil como o maior rapper de sua geração, Abebe Bikila assume essa responsabilidade e encara as altas expectativas. Na última terça-feira (28), promoveu o lançamento de seu novo álbum Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer, com 16 faixas inéditas e participações como: Djavan, Pretinho da Serrinha, MC Maneirinho, além de Borges e Luedji Luna em conjunto na mesma música, sendo o trabalho mais aguardado do rap nacional em 2025 – até o momento.
Comparações com seus projetos anteriores são inevitáveis, afinal, sua discografia carrega uma grande consistência e importância ímpar para o cenário. Destacam-se os seus grandes clássicos Castelos e Ruínas (2016) e Gigantes (2018) e os marcantes O Líder em Movimento (2020) e ICARUS (2022) — basicamente, toda a sua obra, e é justamente nesse ponto que gostaria de chegar. Seu sucesso não é esporádico, repentino e nem passageiro. Trata-se de um marco na cena do rap, que soube utilizar das referências dos que começaram a construir, dar prosseguimento e servir de inspiração para que uma nova leva de artistas continue trilhando de maneira compromissada esse caminho. Portanto, a régua é posta nas alturas, mas BK corresponde.
Antes do lançamento deste que é o seu quinto álbum da carreira, o rapper soltou um curta cinematográfico referente ao mesmo. A produção contém trechos das novas músicas e traz imagens do conceito da obra, que consiste na sua ida à Etiópia para encontrar a origem e ancestralidade que seu nome, Abebe Bikila, carrega.
Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer inicia com Você Pode Ir Além, faixa que carrega o mesmo nome de seu sample da banda Karma, um power trio carioca que lançou um único disco homônimo em 1972 pela RCA, mas que foi de extrema importância para a música brasileira. Dentre os integrantes do trio, estavam Jorge Amiden que tocava uma guitarra tripla e também participou de trabalhos com Erasmo Carlos e integrou a banda de Milton Nascimento. No violão e vocal, Junior Mendes que foi integrante da Banda Vitória Régia, de Tim Maia e colaborou com composições para Sandra de Sá, Emilio Santiago, Banda Black Rio, dentre outros artistas.
Com essa introdução marcante e carregada de história, sob produção de Deekapz, o prodígio do selo Gigantes, Fye, solta os primeiros versos da obra: “Aprendi com os manos que eu me vejo, agora todos eles tão me vendo”. BK entra logo na sequência, na estrofe seguinte: “Eu tenho medo de seguir sozinho, se eu vejo geral se perder no caminho. Sou uma empresa, sócio majoritário, todo campeão é solitário”, dando seguimento à uma filosofia que Abebe carrega em todos os seus trabalhos: do movimento coletivo e da responsabilidade individual de cada um dentro dele. E continua: “Eu não impeço ninguém de voar, mas não permito que roubem minhas asas”. Mensagem passada, flow muito bem encaixado e um sample de responsa, trazendo um solo de guitarra acentuado e tipicamente brasileiro.
Aqueles que acompanham o BK desde os primórdios, sabem que Você Pode Ir Além tem um valor especial, e não é necessário explicar muito, já que se trata de um dos maiores músicos da história do país. Essa postagem do próprio BK, diretamente de 2015, é o suficiente para entender:
Meta pra 2016: BK feat Djavan, fala quem
— BK (@bkttlapa) December 29, 2015
O sonho virou realidade. Na segunda faixa do disco, produzida por Nansy Silvvz, a participação especial de Djavan com o sample de Esquinas abre os caminhos para uma lírica profunda e sobre um sentimento muito particular, como é cantado no próprio refrão sampleado: “Só eu sei as esquinas por que passei”. Do mesmo modo que tudo começa de algum lugar, cada um é responsável e sabe do seu corre e das tortuosidades provenientes dele. Essas mensagens não são novidade nas obras do BK, mas o que surpreende é a inventividade com a qual ele as traz. A poesia se transforma em cada verso e intercala com a voz de Djavan, como uma conversa.
Muito se fala sobre as intenções de um artista, ao mesmo tempo que se confunde a criação de algo ficcional com a realidade vivida pelo mesmo. Como disse uma vez o saudoso cineasta e documentarista Eduardo Coutinho em uma entrevista “Se você me pergunta a diferença do documentário pra ficção, nós não vamos sair do lugar”, pois ela não existe. Na arte, tudo se mistura. Desta forma, ao se analisar o trabalho do Abebe, não se pode considerar que toda a lírica se baseia em fatos, da mesma forma que não há como apontar que tudo é um conto de ficção.
A subjetividade de cada ouvinte pode trazer uma interpretação distinta, mas, no fim das contas, é possível revelar a intenção do rapper em meio a tantas visões graças a coesão. E esta coesão não se desenvolve apenas nesse disco: ela é fruto de toda a sua carreira, que foi construída em cima de produções elaboradas, com ideias e conceitos muito bem definidos, que por mais que se moldem a cada obra, trazem uma mensagem muito bem estabelecida e que vai respondendo a si mesmo conforme suas músicas vão evoluindo dentro de seu próprio universo. Em um dos versos de Quadros, de 2016, BK dizia não saber o que era melhor entre “viver pouco como um rei ou muito como um Zé”. Em 2025, em Só Eu Sei, completa: “Viver muito como um rei, essa é a minha resposta”.
Em Não Adianta Chorar, o produtor JXNV$ explora o som do vinil brasileiro com as vozes do Trio Mocotó, sampleando a música de 1999, Não adianta, do grupo de samba-rock. Responsável também pelos beats e sintetizadores, JXVN$ entrega um resultado primoroso. Na percussão e cavaquinho, Pretinho da Serrinha desenvolve uma sonoridade em meio aos beats que orna como um flow bem encaixado. É um trabalho admirável, já que é justamente ao destrinchá-lo que a produção é capaz tornar perceptível a complexidade instrumental que dá forma à faixa, tornando-a uma música que, ao ser escutada, se transforma em uma coisa só, meticulosamente lapidada e concisa.
Da Madrugada conta com participação de Fat Family em um vocal que tem a composição do saudoso Arnaldo Saccomani. A canção é uma das mais animadas do disco, trazendo batidas de soul que se intercalam com os beats sob mais uma canetada do BK.
Cacos de Vidro tem um sample de Evinha, um dos grandes nomes da Jovem Guarda que merece ser mais vezes resgatado. Com fluidez, BK canta sobre os sentimentos que o permeiam no processo de fazer suas músicas. Através do uso de palavras foneticamente similares e com significados totalmente distintos, ele estabelece uma relação simples porém profunda da ideia passada: “Talvez eu não precise do cais, talvez seja fruto do caos”.
E mais uma vez a ideia de movimento, no sentido de continuidade e progressão – coletiva ou individual – está comumente presente nas letras. De certo modo é a síntese de sua discografia. Na estrofe: “Tente parar o rio e ele transborda; tente parar o bom menino e ele se transforma; tente não ser o resultado de seu próprio trauma; tente o ser aquele que quando for vão sentir, falta”, tudo se baseia no fluxo, na auto reflexão e autonomia. Afinal, o bando não espera, ou corre ou morre.
Ninguém Vai Tirar a Minha Paz é a penúltima faixa de um álbum com 52 minutos que nem se sente passar. A música se inicia repleta de energia psicodelica, com uma atmosfera única proveniente de Minas Gerais. Inconfundível. A participação de Melly também está impecável, com vocal esplendoroso.
Nas palavras do próprio Abebe Bikila: “Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer não é apenas um título, é um lembrete de que acreditar no impossível é o que nos move. E estar na Etiópia foi também um marco pessoal e criativo, como voltar para casa de um jeito que nunca tinha imaginado. Esse projeto é sobre resistência, ancestralidade e a força que vem de quem somos”.