Lana Del Rey — Did you know that there’s a tunnel under Ocean Blvd?
Quando o mundo enxergou a centelha que era Lana Del Rey, ainda em 2012, com o Born To Die, houveram críticas exacerbadas, pejorativas e viscerais contra ela; superficial, fabricada, fetichizada e uma grande rival das pautas feministas em voga — tudo isso era o que grandes críticos da indústria musical diziam sobre aquela persona lânguida, sedutora e que incorporava, como ninguém, a estética da Velha Hollywood. Sua famosa apresentação não muito satisfatória no Saturday Night Live, na metade deste mesmo ano, serviu como uma ótima munição nas mãos desses mesmos críticos, que souberam diminuí-la para níveis abaixo de zero ao longo de alguns bons meses. Essa amalgamação de infortúnios fez com que Lana se recolhesse. Ela parou de dar entrevistas, parou de fazer grandes aparições, e, com isso, ela pegou todos esses limões e fez uma saborosa limonada ao tornar todo esse mistério que a reveste como um de seus charmes.
Onze anos depois, encontramos uma outra Lana Del Rey. Ela ainda é misteriosa e enigmática, mas abandonou, paulatina e sorrateiramente, a própria personagem que ela criou. Ela não é mais aquela Nancy Sinatra gangster e muito menos uma versão adulta de Lolita; ela é uma mulher comum, que gosta de fazer coisas comuns e de viver uma vida extremamente comum, mesmo que a crítica tenha se redimido e a transformado em um dos alicerces da cultura pop dos últimos anos. Lana Del Rey deixou de ser uma personagem para ser, agora, apenas um nome artístico para sua autora, Elizabeth Grant. E é este indivíduo que compôs e lançou, em março deste ano, o seu nono álbum de estúdio: Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd?
O nono álbum de Lana é o mais próximo que ela chegou de mostrar ao mundo quem diabos é a pessoa que dá vida a essa personagem. Ele é extremamente confessional, íntimo e sensível. Esta é uma boa observação, aliás; até o seu sétimo álbum, Norman Fucking Rockwell!, os focos de suas composições eram o mundo, questões políticas, as relações que ela idealizava — e os problemas dessas relações que ela idealizava —, seus ídolos e as coisas que ela admirava. Foi depois disso que o seu foco se tornou algo que muitos julgavam ser ainda mais interessante: ela mesma.
Nada poderia tornar essa metamorfose mais evidente do que a primeira faixa do álbum, que ostenta nada menos que o sobrenome de sua família, The Grants. Nesta canção, ela canta sobre a importância dos seus laços familiares e sobre o quão unidos ela, seu pai e seus irmãos são – sim, ela ainda faz questão de excluir sua mãe quando o assunto é família. A canção, que conta com as ilustres vozes das backing vocals de Whitney Houston, contém uma textura que a deixa similar a um hino religioso, com vocais contínuos, melancólicos, muito piano e muitos melismas. No decorrer da canção, Lana expõe sua notória e elegante melancolia ao cantar sobre o que ela pretende levar com ela quando partir: todas as suas boas lembranças envolvendo o primeiro suspiro de sua sobrinha, nascida em 2019, e o último sorriso de sua avó, falecida em 2020. O álbum fica ainda mais pessoal na faixa-título, onde Lana praticamente implora para não ser esquecida ou substituída enquanto ela se declara para alguém. A metáfora brilhante que permeia a canção alude ao túnel subterrâneo sob a Ocean Boulevard, em Los Angeles, que outrora foi um elo vital e que, com o passar das décadas, mergulhou no completo abandono e esquecimento.
O esquecimento e a efemeridade, aliás, são um tema recorrentes no Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd: quase como quem só agora reconheceu o caráter efêmero de sua passagem na Terra, Lana se questiona acerca de temáticas profundamente existenciais, mas não da perspectiva da estrela enigmática e glamourosa. No disco, a cantora divide, com assombrosa precisão e poesia, os pormenores de um passado amargo, relações familiares traumáticas e até mesmo sugere indícios do porquê tais fenômenos têm a atormentado tanto. Tão admirável quanto sua lírica afiada, a vulnerabilidade da cantora é o ponto central de um disco que, em suas melhores faixas, deixa de recorrer aos arquétipos tão bem explorados no catálogo passado de Lana para tratar do que verdadeiramente a aflige enquanto pessoa. A oposição entre artista e indivíduo é só um dos antagonismos encontrados no álbum, já que, se em Sweet canta sobre sua candura e fragilidade emocional, na brilhante A&W discorre sobre o quanto não se interessa mais em ter alguém para amá-la.
Por mais vilanizado que Jack Antonoff tenha sido nos últimos anos na internet pelos entusiastas mais fervorosos do pop sob a acusação de reciclar melodias e estilismos em suas produções para diferentes artistas, é admirável testemunhar o quão hábil Ocean Blvd é em sintetizar sons comuns ao passado de Lana Del Rey. Embora notavelmente mais refinada e bem elaborada que qualquer canção lançada nos primeiros anos da carreira da cantora, A&W evoca, tanto lírica quanto sonoramente, seus dois primeiros álbuns de estúdio com formidável requinte. Ainda assim, qualquer elogio a Antonoff e Drew Erickson, o segundo principal produtor do disco, torna-se menos significativo à luz dos méritos de composição de Del Rey, que, após embarcar numa sucessão de projetos menos apelativos ao público geral, ultrapassa as elevadas expectativas para entoar e confessar algumas de suas ideias, memórias e perspectivas mais comoventes.
No coração do novo álbum, a sutileza instrumental de Fingertips proporciona a ambientação ideal para as fragilidades de Del Rey. “O bebê vai ficar bem? Algum dia, eu terei um meu?”, se questiona, “se eu tiver, será que eu posso lidar com isso? Dizem que minha mente não é apropriada para cuidar de uma criança”. Quase como uma expressão do fluxo melancólico de consciência de Elizabeth Grant, a canção explora, com menos reservas do que nunca, as complexas dinâmicas familiares entre a artista e sua mãe, além de uma miríade de experiências traumáticas associados ao abuso, o sofrimento psíquico e a morte. Em Fingertips, Del Rey expressa arrependimentos e idealiza um mórbido reencontro com seu tio Dave que, bem como ela, batalhou em vida contra a depressão. Mais sensível ainda é a reconstrução do instante em que Lana foi notificada de sua morte, numa ocasião em que, poucos minutos depois, teria que se apresentar para a família real de Mônaco. “Sentei no chuveiro e me dei dois segundos para chorar”, relembra, antes de dar forma à uma lamentação óbvia, mas não menos deprimente: “é uma pena que morremos”.
Faixas como Grandfather please stand on the shoulders of my father while he’s deep sea fishing navegam por águas similares pelas intenções de Del Rey em saudar a vida de seus familiares ao mesmo tempo em que relembra dos que já se foram. Paralelamente, encontra uma oportunidade para abordar algumas das controvérsias dos últimos anos: a irônica “sou folk, sou jazz, sou azul, sou verde, e lamentavelmente também uma mulher branca” pode soar, enquanto passagem, excêntrica e fora de posição, mas cumpre o propósito de explicitar que, por mais confusas que algumas de suas escolhas e declarações possam parecer, Lana tem boas intenções, ainda que seja uma das últimas a tê-las. Em sucessão, a agradável parceria com Father John Misty em Let the Light In oferece uma alternativa romântica mais atrativa que os relacionamentos conturbados tão expostos por Del Rey em seus trabalhos anteriores, não só pela aprazível dinâmica vocal da dupla, mas também pela produção relaxada primordialmente comandada pelos violões.
Embora trate-se de uma progressão natural deslumbrante e muito bem vinda na carreira de Lana, é possível, com algum esforço, compreender o porquê Did you know that there’s a tunnel under Ocean Blvd pode não agradar os admiradores mais nostálgicos, obtusos e casuais de Del Rey, para os quais até mesmo os extensos títulos ocasionalmente selecionados pela cantora apresentam-se como um obstáculo por si só. O disco é, definitivamente, um dos mais densos já lançados pela artista, mas também seu melhor trabalho até então graças ao abandono do estoicismo enigmático inerente à “rainha da serenidade”, arquétipo que, mesmo nos seus projetos mais bem elaborados, propiciava algum distanciamento. Ocean Blvd é o que se tem de representação mais crua e imediata da alma de Elizabeth Grant, que, com sua humanidade imperfeita e permanente vulnerabilidade, é uma figura muito mais interessante que Lana Del Rey.
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