A overdose da fama: The Weeknd e o fracasso de The Idol | Moodgate
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A overdose da fama: The Weeknd e o fracasso de The Idol

Em 2002, Michael Jackson entregava à imprensa mundial um momento que marcaria o restante de sua carreira. Da varanda de um hotel em Berlim, o cantor segurou seu filho Blanket, então recém-nascido, pela sacada numa tentativa de apresentá-lo para os fãs que lotavam a rua. O momento rendeu fotografias comercializadas pelos tabloides por centenas de milhares de dólares e incendiou debates sobre a saúde mental do artista que, acidentalmente, havia arriscado a vida de uma criança. Cinco anos depois do incidente, Britney Spears seria atormentada pelos paparazzis por uma noite inteira em Los Angeles, levando-os numa viagem entre tatuadores, lojas de conveniência e, por último, um salão de beleza, onde raspou seus cabelos por conta própria com uma máquina zero. Dias depois, em mais um encontro invasivo com fotógrafos, Spears deixou o banco de carona de sua SUV para bater no carro de um de seus perseguidores com um guarda chuva. 

Embora distantes, as fotos originadas desses dois episódios ocupam, ao lado do sutiã cônico de Madonna, o pódio das três imagens mais memoráveis da cultura pop — não necessariamente por boas razões, mas pela imensa repercussão. Os colapsos públicos vivenciados por Britney e Michael não são raros na indústria e, nos anos seguintes, seriam protagonizados por dezenas de outros artistas em diferentes áreas do entretenimento, como Lindsay Lohan, Amanda Bynes, Demi Lovato e, mais recentemente, a modelo Cara Delevigne. Esses episódios são caracterizados por períodos de inconstância e instabilidade, frequentemente associados ao abuso de substâncias ou por declínios de saúde mental. A espetacularização midiática que ronda os chamados breakdowns é voraz e, em parte, supre a curiosidade de um público geral insaciável que trata seus ídolos como produtos inesgotáveis para o consumo irrestrito.  

As imagens de Michael Jackson em 2002, de Madonna em 1990 e Britney Spears em 2007 são três das fotografias mais comentadas e propagadas da história cultura pop.

Essa crítica social parece ser a premissa inicial de The Idol, série da HBO protagonizada por Lily-Rose Depp e Abel “The Weeknd” Tesfaye, que se encerrou precocemente no dia 2 de julho. Dirigida por Sam Levinson, que também assina Euphoria, The Idol conta a história de Jocelyn, uma estrela pop em declínio que coleciona similaridades com cantoras da vida real, como Britney Spears e Selena Gomez. Na trama, inúmeros detalhes são subentendidos desde o primeiro episódio, onde um roteiro preguiçoso se encarrega de nos oferecer informações prévias sobre Jocelyn sem necessariamente mostrá-las. A partir de conversas entre a equipe de gestores que comanda a carreira da jovem, entendemos que ela acaba de deixar um período de fragilidade após a morte de sua mãe, vítima de câncer. Além disso, inúmeras são as pistas de que Jocelyn era, assim como Spears, uma estrela desde a infância, provavelmente ligada a um programa infantil.

No seriado, a personagem de Lily-Rose Depp parece ter tudo. Fama, dinheiro, a admiração de milhões de fãs e dezenas de funcionários ao seu dispor, tanto para gerenciar o cotidiano de sua mansão luxuosa, quanto para administrar sua carreira. Nada disso, no entanto, é suficiente para impedir que Jocelyn vacile: sufocada pela constante vigilância e controle de sua gravadora, que a pressiona para lançar um novo hit que possa vender os ingressos de uma turnê em estádios por todo o país, a popstar busca escapismos do mais diversos enquanto tenta calibrar sua saúde mental. Mais do que qualquer outra coisa, Jocelyn parece querer voltar à forma e reassumir seu posto no panteão das artistas pop desse universo fictício, mas não por razões artísticas. Do contrário, a personagem expressa algum desdém pela música que lhe é oferecida pela gravadora, uma faixa que poderia passar como um descarte modernizado do disco de 2008 de Britney Spears, Blackout

The Idol é recheada de referências desse tipo. Da coreografia ensaiada por Jocelyn às tentativas de desafiar o controle de sua equipe para lançar material autoral, tudo é reminiscente de Spears. A série, no entanto, não tenta esconder a inspiração e, no roteiro, menções à Britney e seu colapso de 2007 são feitas já no primeiro episódio. “É uma homenagem a Britney”, comenta um dos gestores de imagem de Jocelyn sobre a dança de World Class Sinner“O que ela e Jocelyn passaram é realmente único, mas também universal”, completa. Até mesmo um dos teasers lançados pela HBO tem Gimme More, de Spears, como trilha sonora. 

Lily-Rose Depp interpreta Jocelyn, uma popstar claramente inspirada em Britney Spears, Selena Gomez e outras estrelas da música.

Nos primeiros minutos do primeiro episódio de The Idol, entre takes de uma Lily-Rose Depp nua e debates entre os representantes de sua gravadora acerca de uma foto íntima vazada da cantora, Criminal, de Fiona Apple, toca ao fundo, de forma notoriamente inapropriada e desconexa com a proposta do roteiro. Desde os anos noventa, Apple é notória por não omitir seus traumas e abusos e, ao longo de sua carreira, se opôs explicitamente ao sexismo, mas não sem compreender como sua experiência enquanto mulher havia sido moldada por ele. The Idol, no entanto, escolhe desafiar o sexismo por outras lentes: a sexualização constante de Jocelyn (e consequentemente de Rose-Depp) é disfarçada como um ato de libertação e independência, como um componente estético aparentemente indispensável da direção fotográfica da série. 

Mesmo em Euphoria, as câmeras de Sam Levinson variavam entre registrar o consumo alarmante de drogas por parte de adolescentes e a sexualização inapropriada das atrizes. Sydney Sweeney, que interpreta Cassie em Euphoria, declarou em uma entrevista que chegou a pedir para Levinson reduzir as cenas em que sua personagem aparece nua.

Em The Idol, o fetichismo alcança um nível ainda mais doentio e frequente. Segundo a Rolling Stone, The Weeknd é um dos culpados por isso. Inicialmente, a série foi apresentada a HBO como uma saga de uma ex-estrela adolescente que, presa numa indústria sexista e controladora, reivindica sua integridade. De princípio, a série seria dirigida por Amy Seimetz, conhecida por outros trabalhos que operam numa ótica alinhada com o roteiro inicial. Em abril do ano passado, fontes reportaram que Seimetz havia deixado a direção de The Idol, com quase 80% do produto final concluído. O artigo da Rolling Stone atribui a saída de Seimetz à insatisfação de The Weeknd com o roteiro, que apontava numa direção contrária à que ele havia imaginado ao “se inclinar demais para uma perspectiva feminina”. Orgulhosamente, o nome do artista estampa, agora, os créditos finais de cada episódio de The Idol, após submeter os espectadores a uma hora de material pornográfico intercalado com os diálogos mais medíocres da televisão em tempos recentes. Em uma das cenas, o detestável e nada carismático Tedros, personagem de The Weeknd, simula preliminares com Jocelyn num estúdio, na frente de diversos colegas do casal e de produtores proeminentes da indústria. No roteiro, os momentos de maior exposição sexual e fragilização de Rose-Depp são justificados em nome da “criatividade” e da “integridade artística” de sua personagem, duas qualidades ausentes em The Weeknd e Levinson durante a elaboração da série.

Como artista, introduções ao talento de Abel são desnecessárias. Além dos excelentes resultados comerciais, os discos de Tesfaye acumulam recordes, prêmios e boas avaliações da crítica especializada. Seus dois últimos álbuns de inéditas, After Hours e Dawn FM, consagraram o cantor como um dos expoentes de sua geração, capaz de imprimir uma assinatura singular em cada um de seus trabalhos. Mesmo assim, quando os relatos alarmantes de membros da equipe de filmagem de The Idol foram veiculados pela Rolling Stone, The Weeknd escolheu zombar da situação no Twitter. No prestigiado festival de Cannes, os dois episódios iniciais da série foram apresentados para críticos, atores e outros convidados e, no mesmo dia, The Idol tornou-se uma das produções mais mal avaliadas do ano no Rotten Tomatoes, mesmo antes do seu lançamento oficial.,

A indústria que The Weeknd e Sam Levinson escolheram para ambientar o seriado parece ser, também, o alvo de uma suposta crítica que habita o roteiro, em algum lugar entre péssimos diálogos e as numerosas indicações de que Lily-Rose Depp deve estar seminua para uma cena. Em Cannes, Levinson, Tesfaye e Rose-Depp choraram emocionados após a exibição de The Idol enquanto, por educação e numa tradição comum do festival, a plateia aplaudia de pé. Já durante as semanas em que a série foi exibida pela HBO, nenhum dos três se manifestou sobre as críticas negativas. Programada para seis episódios, The Idol foi encerrada no quinto, com um final confuso e incoerente, mas provavelmente mascarado pelos roteiristas como uma prova de que Jocelyn sempre esteve no controle, mesmo quando era submetida a abusos físicos, sexuais e psicológicos por parte do personagem de The Weeknd. O desconforto causado por essas cenas não cumpre qualquer propósito narrativo, tampouco proporciona reflexão, parecendo existir única e exclusivamente para cumprir fetiches sádicos dos criadores.

À essa altura, é impossível não pensar que The Idol é um produto da vaidade de The Weeknd. Inúmeros são os artistas que já se aventuraram pela indústria cinematográfica ou televisiva e, raramente, esse tipo de fracasso é o suficiente para abalar seu desempenho comercial na música. Abel, no entanto, parece estar experimentando um episódio de overdose de sua própria fama, tão convencido de sua própria genialidade que acredita ser capaz de transformar em ouro tudo o que tocar. Talvez seja um exagero sugerir que o roteiro abominável e a presente sexualização de mulheres em The Idol expressa algum traço de personalidade do artista, mas o caminho mais seguro para Tesfaye e Levinson é fingir que a série nunca existiu. 

E, porque a Moodgate ainda é um veículo musical, vale pontuar que a trilha sonora de The Idol não merece seu complemento visual. As faixas cantadas por Suzanna Son, que interpreta a jovem Chloe na série, mostram um domínio de interpretação assombroso por parte da atriz. Até mesmo canções soltas, como a parceria de The Weeknd com Playboy Carti e Madonna, World Class Sinner e Dollhouse, essas cantadas por Rose-Depp, são agradáveis em alguma medida e têm qualidades próprias. Não o suficiente, entretanto, para impedir que caiam no amargo esquecimento graças ao fracasso de The Idol.

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