Kate Bush - Hounds of Love (1985) | Moodgate
Um novo sentimento para a música
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Kate Bush – Hounds of Love (1985)

Uma vez por ano, a curadoria da Moodgate seleciona uma coleção de discos clássicos e atemporais para, numa retrospectiva detalhista e contextual, analisar sua importância. Neste texto, nossa redação explora o disruptivo e inovador Hounds of Love de Kate Bush, lançado em 1985.

Em 1978, quando Kate Bush dominou as paradas musicais britânicas com Wuthering Heights, o viral mais improvável da música pop até então, o público, as rádios e as emissoras não sabiam como categorizá-la. Na época, os adjetivos mais comumente atribuídos a estrelas femininas comercialmente bem sucedidas numa idade tão jovem eram rótulos que carregavam consigo a clara intenção de diminuir seu talento ou trabalho. Nos Estados Unidos, debates na imprensa acerca da vida pessoal de Joni Mitchell, já veterana do folk nacional, eclipsavam méritos recentes da artista. Mitchell havia passado os últimos vinte anos lançando alguns dos discos mais confessionais e inventivos da história da música, mas a Rolling Stone estava mais interessada em dissecar seu histórico de relacionamentos amorosos. Contemporâneas de Bush como Donna Summer e Patti Smith recebiam tratamento midiático similar, criticadas pelo espírito rebelde de seus trabalhos e a insubmissão ao sexismo dos anos 70.

Não é surpreendente que Kate, no Reino Unido, tenha lidado com os mesmos olhares. Como a primeira artista britânica a alcançar o topo das paradas nacionais com uma canção de sua própria autoria, Bush enfrentou, nos cinco anos que sucederam Wuthering Heights, forças das mais diversas. Os dois discos lançados após o The Kick Inside, seu álbum de estreia, careceram do mesmo apelo comercial. Embora absolutos sucessos de crítica, o Lionheart e o Never for Ever preocuparam a EMI, sua gravadora, pelo desequilíbrio entre os investimentos na produção dos projetos e o retorno financeiro. A desproporção tornou-se especialmente alarmante no quarto álbum, The Dreaming, que, além de ter recebido respostas mistas da crítica especializada, marcou a pior performance comercial de Kate até então. There Goes a Tenner, o último single do disco, conquistou apenas o número 75 nos charts britânicos.

Kate Bush em 1982 durante as promoções de divulgação do The Dreaming. Apesar do reconhecimento nos anos recentes, o álbum teve, na época, a pior performance comercial de sua carreira e falhou em compensar os investimentos da EMI, sua gravadora.

Ao mesmo tempo em que tinha o pior desempenho de sua carreira nas rádios, Bush nunca esteve tão no controle de seu processo criativo. Com sua produção feita quase que inteiramente no Fairlight, sintetizador digital recém introduzido no mercado, o The Dreaming foi, para a EMI, um álbum especialmente custoso. Ao lado do produtor Jon Kelly, Kate empenhou-se para masterizar por conta própria todas as tecnologias empregadas na construção do disco, mas os resultados comerciais inexpressivos não tardaram em ameaçar seu contrato com a gravadora. Para Kate, no entanto, manter sua integridade artística era uma prioridade. Nos meses que seguiram o lançamento do The Dreaming, a artista trocou o frenesi da capital da Inglaterra por uma fazenda numa área rural, e criou, sozinha, o álbum que redefiniu sua carreira. 

Conciliando as demandas mercadológicas com o vanguardismo inspirado e genial de Kate, o Hounds of Love é maximalista em todos os sentidos. O quinto álbum de Bush é instantaneamente magnético, intrigante e inesquecível. Dividido em duas parcelas igualmente estonteantes, o imenso sucesso do Hounds of Love se dá, principalmente, por sua primeira fração: a instrumentação toma proporções monumentais durante refrães tão memoráveis quanto os de qualquer outra música pop mas, ao mesmo tempo, extremamente originais. Enquanto experiência, o disco oferece a impressão de que o ouvinte testemunha o sublime; o tipo de obra que se imortaliza na história num lugar reflexivo de sua era, mas tão atual quanto qualquer outro projeto. O álbum não oferece espaço para que sua sonoridade se banalize e fabrica fórmulas que, nas décadas seguintes, se tornariam a espinha dorsal do legado de Bush, responsável por influenciar diretamente nomes dos mais diversos na indústria.

Inaugurada pelos sintetizadores de Running Up That Hill (A Deal With God), a primeira metade do LP compreende seis das músicas mais celebradas do catálogo de Kate. Com influências de new wave e synth pop, a canção é excepcional por conta própria, mas toma dimensões ainda maiores enquanto faixa de abertura. Os vocais soam imperativos, ainda que a lírica expresse um esforço quase melancólico provocado pelo desejo urgente de, por meio da compreensão do outro, reparar uma relação. Numa concessão incomum para Bush, a cantora permitiu que o nome original da música fosse complementado pela primeira parcela, já que, de sua perspectiva, o título deveria ser apenas “A Deal With God”. A alteração se deu pelo receio da EMI, que temia possíveis retaliações de grupos religiosos que poderiam, em tese, prejudicar o desempenho comercial da canção.

Em tempos recentes, Running Up That Hill experimentou um ressurgimento na cultura pop e nas rádios graças a sua inclusão na trilha sonora de Stranger Things, série da Netflix. A faixa representa uma fração mais carismática do Hounds of Love, projetada para (ao modo particular de Bush) o consumo popular. As composições relatam temas universais, como a busca pela compreensão e a empatia em um relacionamento, ou a maternidade como um porto seguro. Na faixa título, a artista escolhe atribuir ao amor a forma de cães insaciáveis que a perseguem por diferentes cenários. Enquanto escapa dos males proporcionados pela paixão, a protagonista reflete sobre suas necessidades afetivas e o real significado do amor. Os violinos que acompanham o refrão aliam-se a uma bateria que, presente por toda a canção, completa a sensação da adrenalina causada pela fuga.

Imagens de encarte e divulgação do álbum Hounds of Love. Desde seu lançamento, o álbum foi imortalizado na história da música como o trabalho mais emblemático de Kate Bush, mas também como um ponto de virada em sua carreira.

A produção de The Big Sky é igualmente grandiosa e, por seus quatro minutos e meio, se expande gradualmente para, em consonância à voz empolgada de Kate, dar a impressão de que poderia crescer, assim como o céu, por toda uma eternidade. É em Cloudbusting, entretanto, que Bush exibe, mais uma vez, seu afinco pela literatura. Inspirada nas memórias de Peter Reich, filho de um cientista esotérico que tinha a manipulação climática como objetivo, a música independe da compreensão lírica para imprimir um tom de esperança e nostalgia que preenchem qualquer coração. Embora não partilhe do mesmo caráter excessivamente elaborado de outras canções no álbum, a instrumentação da faixa e as melodias vocais tornam Cloudbusting um destaque instantâneo em um disco já repleto de fragmentos incríveis. A composição referencia detalhes específicos da história de Reich e sua família, indo da idealização de uma máquina projetada por seu pai para capturar nuvens até sua subsequente prisão e total destruição de seu trabalho. As cordas do refrão transbordam um otimismo bem representado pelas letras: “eu sei que alguma coisa boa vai acontecer”, canta Kate. “Não sei quando, mas só dizer pode fazer com que aconteça”

And Dream of Sheep, por outro lado, é cadenciada e escrita como uma canção de ninar. Entre versos que sugerem tentativas de uma personagem de manter-se acordada numa ambientação ainda incerta, frequências de rádio quase incompreensíveis e o som de pássaros pintam uma imagem inóspita de isolamento. A faixa também é o prelúdio para a segunda metade do Hounds of Love, intitulada The Ninth Wave. Lançado na era do vinil, o álbum divide seu lado A e lado B como partes conceitualmente distintas, com a primeira parcela sendo encarregada de apresentar os singles mais radiofônicos do disco. O lado B, entretanto, conta a história de uma mulher perdida no mar após um naufrágio. Na imensidão desoladora da noite, a protagonista é acometida por alucinações de seu passado, presente e futuro que, em conjunto, tentam mantê-la acordada e a salvo do afogamento.

Se os violinos de Under Ice já proporcionam um pressentimento negativo, a sequência com Waking the Witch mostra-se claustrofóbica. Na primeira faixa, Kate se divide entre projetar sussurros assombrosos, quase guturais, e versos que relatam momentos diferentes de um sonho. Inicialmente, a narradora patina sobre um rio congelado que, aos poucos, revela uma imagem assustadora sob o gelo. Na alucinação, ela se vê presa e sufocada na água e, imediatamente, clama por ajuda. O auxílio vem em Waking the Witch na forma de mais um devaneio, quando vozes familiares tentam chamar sua atenção. “Bom dia, senhora”, “você precisa acordar”, “acorde, filha, preste atenção”, “acorde, amor”; inúmeras figuras surgem para o eu lírico, numa coleção de memórias que assumem timbres pertencentes a amantes, pais, amigos e tantos outros papéis. O piano que acompanha os ruídos se encerra para dar lugar a sintetizadores caóticos e frases à princípio incompletas, como se a narradora estivesse se afogando. A ilusão é igualmente confusa e, de algum modo, a mulher passa a acreditar que é a ré num julgamento por bruxaria, cercada de preces em latim e vozes aterrorizantes que buscam extrair uma confissão. Enquanto ela é inocentada das acusações em seu pesadelo, hélices de um helicóptero anunciam a chegada de seu resgate.

Na época de seu lançamento, a segunda metade do Hounds of Love tornou-se um enigma tão relevante para a imprensa britânica que Kate, conhecida por sua reclusão e pouca disposição para aparições midiáticas, ofereceu uma entrevista para uma rádio explicando a maioria das faixas do disco. Ao longo das canções seguintes, a protagonista viaja por uma série de acontecimentos e reflexões. Em Watching You Without Me, ela é incapaz de se comunicar verbalmente com seus familiares. Sentada na mesma posição com quase nenhuma consciência, teme que seu trauma a mantenha em um estado vegetativo tão grave a ponto de fazê-la ser esquecida por aqueles que ama. 

Da mesma maneira que Cloudbusting define o lado A do álbum, a deslumbrante Jig of Life é a peça central da segunda metade do Hounds of Love. Neste capítulo, a narradora é confrontada por uma visão de seu futuro que ordena que ela não desista de seu presente. Mais uma vez, o instrumental rouba a atenção como uma das produções mais carregadas e impressionantes da discografia de Kate ao introduzir uma fusão de acordes que, com suas influências celtas, ilustram uma qualidade medieval. Por mais abstratas que as letras do álbum possam soar, a composição das faixas opera em medidas extremamente precisas e os detalhes são incontáveis.

A história chega a um suposto fim na orquestral e cinemática Hello Earth, que sugere tamanha dissociação por parte da protagonista que, durante as tentativas da equipe de resgate em alcançá-la, perde total consciência. Como uma entidade espiritual, passa a enxergar o planeta Terra não como uma residente, mas como uma observadora distante. A seção de cordas, coral e gaita na metade de Hello Earth se expressa como a assinatura de Kate Bush não só no Hounds of Love, mas em todo o seu catálogo. No restante de sua carreira, a artista continuaria a convergir múltiplas influências em seu trabalho, colhendo referências e sonoridades extremamente únicas. O trabalho instrumental da canção é reminiscente da faixa título do disco seguinte, The Sensual World, lançado quatro anos depois. The Morning Fog funciona como um epílogo da narrativa e de sua personagem central, que, apesar dos traumas do naufrágio, sobrevive.

Lançado há quase quarenta anos, o Hounds of Love desconhece nichos e figura entre as obras musicais mais inovadoras e fundamentais de todos os tempos. Embora devidamente reconhecido como tal há décadas por uma fatia específica do público, a habilidade do álbum em triunfar em tempos atuais comprova sua imortalidade e, acima de tudo, a competência de Kate em comunicar-se com diferentes gerações e produzir o mesmo deslumbramento impactante. Em mais quarenta anos, o disco, bem como a própria artista, continuará a ser reverenciado como o trabalho quintessencial da música pop que, como gênero, teve muitos dos seus paradigmas ditados por ela. Da invenção do microfone de orelha à execução teatral de performances, Kate Bush ocupa um lugar perpétuo e intransferível na história da música como uma artista que, a despeito das inúmeras dificuldades de sua época, não domou a própria ousadia e artisticidade. Em troca, se tornou uma lenda.

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